sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Os Sertões, de Euclides da Cunha


Capa do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha


A inexistência de uma unidade nacional, tanto no que se refere aos aspectos naturais quanto aos aspectos sociais, é tema da obra de Euclides da Cunha. Em "Os Sertões", Euclides, através de uma análise geográfica, antropológica e sociológica dos processos que culminaram na formação do Estado brasileiro republicano — em especial do Nordeste — contribui para o debate em torno da pluralidade natural e social de nosso país.

Publicado em 1902, sendo fruto das inquietações do autor referentes à recente Proclamação da República, "Os Sertões" colocou em xeque a real efetivação dos ideais republicanos em nosso país.

"A pique ainda das lamentáveis consequências de sanguinolenta guerra civil... demonstrará a inadaptabilidade do povo à legislação superior do sistema político recém-inaugurado..."

O autor utiliza a Guerra de Canudos para evidenciar as contradições presentes em nosso território, denunciando a ação do recente governo republicano em Canudos — ação essa pautada pela violência e pela falta de qualquer conhecimento da real situação do povo sertanejo que habitava naquele local.

"Eram realmente, fragilíssimos, aqueles pobres rebelados... Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain: e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala."

Resenha de Os Sertões

O livro pode ser dividido em três partes principais, sendo abordados na primeira parte os aspectos naturais do nosso território e, em especial, do Nordeste. Nesta parte, Euclides busca, através dos poucos conhecimentos geográficos existentes na época, evidenciar as diferenças naturais presentes em nosso país. Na segunda parte, o autor aborda os aspectos raciais dominantes na formação do povo brasileiro. Esta parte do livro deve ser analisada com muitas ressalvas, porquanto o autor, ao analisar a diversidade social brasileira, apoia-se em um determinismo muito propagado na época.

"...reflete, na índole e nos costumes das outras raças formadoras, apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente."

Através desse determinismo, o autor relacionará a capacidade intelectual do povo brasileiro aos processos de mestiçagem ocorridos durante a colonização. Amparado no darwinismo social, o autor enxerga uma inferioridade e justifica essa inferioridade de determinadas raças em contraposição a outras nos processos de evolução. Outro fator predominante na constituição física e intelectual do povo brasileiro, para ele, é o meio físico no qual o indivíduo está inserido.

Essas teses deterministas estão atualmente ultrapassadas, porquanto é consenso nas ciências sociais o papel predominante das relações sociais na constituição intelectual do indivíduo, sendo essas relações dinâmicas e repletas de possibilidades. Euclides, nessa segunda parte, aponta a existência de dois tipos de homens brasileiros: o mestiço neurastênico do litoral e o mestiço do sertão. Segundo ele, o mestiço do sertão, devido às dificuldades de sobrevivência e ao isolamento proporcionados pelo meio físico, tornou-se um tipo específico de homem, sendo um homem forte. As provações geradas pelo meio físico, bem como o isolamento geográfico, o tornaram diferenciado do resto do país.

"O sertanejo é, antes de tudo, um homem forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral".

Um desenho de Antonio Conselheiro segurando uma cruz

O mestiço neurastênico do litoral, por outro lado, não possui uma unicidade tanto física quanto intelectual, sendo fruto de grande mestiçagem. Contudo, o mesmo possui a vantagem de ter mais contato com o mundo civilizado, sendo influenciado pelo mesmo e tendo, com isso, um maior desenvolvimento intelectual. Diante dessas diferenças tanto físicas quanto culturais, surge o conflito.

Na terceira parte do livro, o autor narra a Guerra de Canudos. Buscando desmistificar o conflito, o autor mostra o resultado da falta de unidade nacional presente em nosso território. De um lado, temos brasileiros em condições de miséria, abandonados pelo poder público. De outro, temos as forças governamentais distantes dos problemas daquele povo, prontas para destruir qualquer tipo de insurgência.

Sendo engenheiro civil de formação, Euclides adquiriu um conhecimento aprofundado referente ao conflito, porquanto o cobrira para um jornal de São Paulo. Segundo Euclides, ao contrário do que se imaginava no Sudeste, o povo de Canudos não oferecia qualquer ameaça à recente República. Seu líder, Antônio Conselheiro, não passava de um desequilibrado, sem nenhum tipo de contato político relevante. Seus homens não possuíam nenhum tipo de armamento pesado e os habitantes de Canudos viviam em estado de miséria. A miséria e a esperança quase cega em um futuro melhor os levaram a fundar Canudos e a seguirem Conselheiro.

O recente governo republicano, que pregava uma unificação nacional, não foi capaz de enxergar o surgimento de Canudos — e de tantas outras "favelas" — como sintoma de um problema maior, relativo à massa de brasileiros abandonados pelo Estado, que deveria estar proporcionando formas de sobrevivência e desenvolvimento social para essas pessoas.

Publicado no início do século XX, o romance poderia servir de alerta para um Sudeste tão distante dos problemas do Nordeste brasileiro e das necessidades da grande massa de desfavorecidos espalhados pelo nosso território que acabam sendo esquecidos. Após cem anos e alguns avanços, continuamos a sonhar com uma verdadeira unificação nacional e um único Brasil, sendo a nossa realidade diversos países dentro de um país repleto de desigualdades.


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quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Intriga Internacional - Edward Pollitz Jr

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A capa do livro, na edição da Editora Portugália, chama a atenção pela quantidade variada de tramas realçadas no canto esquerdo inferior, indo desde chantagem e alta finança até o serviço secreto, passando pelo presidente dos EUA e líderes revolucionários do Oriente Médio.

A descrição do livro dá uma pista da confusão com a qual o leitor se deparará pela frente. O leitor, durante as primeiras páginas, não sabe ao certo em qual trama a história se centralizará. O fato de diversos personagens desfilarem pelas primeiras páginas gera uma dificuldade para o leitor guardar os nomes e características de cada um; com isso, as primeiras páginas se tornam confusas.

Resenha de Intriga Internacional 


Inicialmente, nos deparamos com um assassino árabe disposto a tudo para cumprir suas ordens. Servo fiel de um regime autocrático, utiliza-se de cruéis habilidades homicidas para cumprir sua missão de morte na Riviera francesa.

Uma trama internacional relacionada a esses homicídios cometidos pelo árabe toma contorno. Nela, a invenção de um carro movido a energia solar, juntamente a uma crise mundial do petróleo, se apresenta como mote da trama que se desenrola na Riviera Francesa, envolvendo agentes secretos franceses, israelenses e americanos.

A ameaça de um pequeno país do Oriente Médio de destruir parte das reservas de petróleo do continente asiático leva os EUA, grandes importadores dessa commodity, a arquitetarem uma invasão ao país — invasão essa que levará a uma interrupção da importação de petróleo. No intuito de impedir o caos que será gerado pela falta de gasolina, a General Motors, utilizando-se dos serviços de um cientista excêntrico, desenvolve um projeto de um carro movido a energia solar.

O ditador árabe, sabendo desse projeto, manda seu fiel assassino atrás desse brilhante cientista que permanece no anonimato, dificultando a ação do matador. Um velho general francês, ligado a uma organização francesa de espionagem, começa a seguir a trilha de homicídios. Com isso, temos um assassino árabe, um cientista excêntrico, um velho general francês, além de um casal de americanos de férias na Riviera que, por inconsideração, acabam envolvidos nessa trama.

Curiosamente, o assassino passa a maior parte do livro empregando seus esforços no intuito de matar o casal em vez do cientista, que, apesar de sua importância no desfecho dessa trama, acaba ficando em segundo plano na história.

As razões que levaram o presidente americano a arquitetar uma substituição da produção automotiva americana não ficam claras ou convencentes no livro, sendo facilmente refutadas pelos inúmeros esforços militares colocados em prática nas últimas décadas pelos americanos em países do Oriente Médio. Ou seja, controlar esses países se mostra mais viável do que recriar a produção automotiva americana.

O romance, em alguns momentos, acaba se tornando maçante, exigindo certo esforço devido à incapacidade de a trama cativar o leitor. Portanto, o romance acaba tendo uma qualidade inferior aos tão famosos romances de espionagem já lançados.

A premissa do romance — crise do petróleo e tentativa de fabricação de um carro movido a energia solar — é um tema que atrai o leitor; contudo, o autor não soube desenvolvê-lo de uma forma que o leitor comprasse a história, tornando, com isso, o livro de qualidade mediana. O excesso de páginas (290), além de personagens, dificulta o ritmo da leitura, porquanto o leitor acaba pulando de subtrama em subtrama, deixando o livro confuso e cansativo.


sábado, 5 de novembro de 2016

Arsenal de Família, de Paul Theroux

Capa do livro Arsenal de Família, de Paul Theroux

Romance de Paul Theroux, "Arsenal de Família" tem por tema o terrorismo urbano, sendo o tema abordado através dos diversos pontos de vista de personagens com visões de mundo distintas, tendo a cidade de Londres o papel de teia que faz com que suas vidas se cruzem, em um urbano cada vez mais desenvolvido, fruto de uma hierarquização social baseada no poder de consumo.

Resenha de Arsenal de Família


O romance, publicado originalmente em 1974, retrata uma metrópole europeia que vive um crescente desenvolvimento capitalista aliado a um aumento das desigualdades sociais, sendo um lugar de contradições. A crise econômica pela qual o país atravessa gera um sentimento de desconfiança na população, que vê cada vez mais intensificadas as desigualdades sociais. Nesse cenário, surgem grupos dispostos a modificar, através do caos, a lógica dominante.

Agindo à margem da sociedade através de roubos e ataques a bomba, buscam através do caos modificar as estruturas de poder, levando a população a sair do seu estado de sonolência e enxergar as contradições presentes no mundo moderno. Contudo, esse grupo não se apresenta homogêneo, sendo composto por diferentes pessoas movidas por diferentes ideias. Alguns membros desse grupo se intitulam anarquistas, outros marxistas; no entanto, o autor não entra no mérito dessas ideologias, mostrando personagens com conhecimentos superficiais sobre esses temas.

Dentre os personagens, dois se destacam, sendo eles: Hood e Gawber. Hood, americano, fixa residência no subúrbio de Londres após abandonar um cargo no Departamento de Estado americano. É um personagem misterioso, não sendo possível compreender aonde realmente ele quer chegar ao se filiar ao grupo terrorista. Ao juntar-se a esse grupo, ele se oferece para chefiar uma ofensiva do grupo em Londres. Hood não suporta ver a exploração sofrida pelo povo; ao avistar um senhor e seu pequeno filho recolhendo papéis na rua, sente-se compelido a livrá-los dessa situação humilhante, apesar de não conhecê-los:

"Aquilo pareceu a Hood um imerecido castigo... desejando poder livrá-los de um trabalho que ele próprio não faria."

Sendo impulsivo e destemido, não aparenta ter medo de nada, pondo-se em perigo sem buscar preservar sua vida. Em determinado trecho, Hood faz menção ao Vietnã como estopim para abandonar sua antiga vida. Sendo um personagem misterioso, os motivos que o movem como um carro desgovernado não ficam explícitos no romance.

Gawber apresenta-se como antítese de Hood, sendo pequeno, frágil e metódico, proveniente da antiga classe média inglesa. Possui um emprego de contador e uma casa em um antigo bairro londrino. Ao contrário de Hood, Gawber vive em uma perpétua rotina do trabalho para a casa. Contudo, apesar de sua rotina e aparência, ele esconde um sentimento de revolta para com o rumo que seu país está tomando. Enquanto Hood detesta o sistema pelo fato de o mesmo ter gerado constantes desigualdades sociais, Gawber detesta o sistema pelo fato de ele ter gerado uma crescente onda de migração de populações de países periféricos para Londres — populações essas que foram habitar em bairros tradicionais, como o de Gawber, trazendo consigo suas culturas e modificando a paisagem desses bairros.

Como contador, ele prevê um colapso econômico iminente, colapso esse que trará caos e instabilidade ao país:

"Ele vira os algarismos e sentira fumaça; a economia estava precisando de uma completa reestruturação."

Gawber chega a desejar esse colapso, porquanto não suporta ver as modificações ocorridas pela migração em seu país, sendo que, para ele, esse colapso provocará a saída dessas populações em busca de outro lugar para viver:

"...tudo isso fez com que ele desejasse um holocausto purificador — uma crise visível..."

Em uma Londres repleta de contradições e conflitos, a população vive suas vidas tentando ignorar essas tensões. As frases pichadas em muros, apesar de fazerem alusão aos times de futebol do país, trazem à tona a instabilidade desse urbano que tenta equilibrar uma ordem e hierarquização social com o caos gerado pelas contradições do sistema capitalista. A frase "Arsenal Domina" simboliza, apesar das diversas visões de mundo da população londrina, um movimento de caos que cada vez mais se instala na metrópole.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O Monstro de Florença, de D. Preston e M. Spezi


Capa do livro O Monstro de Florença, de D. Preston e M. Spezi



Assassinatos em série, uma bela cidade italiana palco de muitas das maiores criações artísticas do Renascimento, mutilação de cadáveres e diversos suspeitos detidos, além de teorias envolvendo rituais satânicos. Estes são alguns dos elementos presentes em uma narrativa que facilmente se equivale às mais fantasiosas histórias de serial killers já escritas; contudo, trata-se de uma história real, tão real ao ponto de um dos escritores, Spezi, ter sido oficialmente acusado de ter participação na série de homicídios. Com isso, um relato iniciado como reconstituição dos assassinatos torna-se uma tentativa de Spezi provar sua inocência.

Resenha de O Monstro de Florença


Durante o final dos anos sessenta até meados dos anos oitenta, oito casais foram assassinados na cidade de Florença, na Itália, tendo em comum nesses homicídios a arma utilizada — um revólver — bem como o perfil dos assassinados. Todos eram jovens casais que foram mortos durante o ato sexual em seus carros, estacionados em locais afastados da cidade. Em alguns homicídios, os corpos das mulheres foram mutilados após a morte, sendo retirada a genitália das mesmas.

Apesar de a polícia italiana investigar os assassinatos por trinta e nove anos e efetuar diversas prisões — sendo muitas delas absurdas e carentes de quaisquer evidências — o caso nunca foi solucionado. Mario Spezi, um jornalista investigativo de um jornal de Florença, durante os trinta anos de investigações, acabou se tornando um estorvo para a polícia italiana, porquanto sempre discordava dos rumos tomados pelas investigações. Essa insistência em contrariar as absurdas conclusões policiais levou o mesmo a ficar na mira da polícia italiana, culminando com a sua prisão.

"Durante o processo, Spezi e eu nos apaixonamos pela história... Com Spezi foi pior: ele foi acusado de ser o próprio Monstro de Florença."

Dentre as provas apresentadas pela promotoria, talvez a única aceitável tratava-se de uma rocha encontrada na cena de um dos homicídios, sendo posteriormente encontrada uma rocha parecida na casa de Spezi. Para o inspetor de polícia Giuttari, essa rocha, com um formato um pouco triangular, era um objeto esotérico utilizado em rituais satânicos. Essa rocha mágica, na verdade, não passava de um peso de porta muito utilizado pelos habitantes da região da Toscana.

Preston, um famoso escritor americano de livros policiais, após mudar-se para Florença com a família e tomar conhecimento da história sobre o Monstro de Florença, decidiu escrever um livro sobre esse serial killer que, segundo ele, era pouco conhecido nos Estados Unidos. Após travar conhecimento com Spezi, que era um dos maiores especialistas no assunto, decidiu juntar-se a ele na busca pelo verdadeiro Monstro de Florença.

Em alguns momentos da narrativa, as trapalhadas da polícia italiana chegam a sobressair, relegando a busca pelo verdadeiro assassino a segundo plano, evidenciando, com isso, a precariedade do setor de inteligência da polícia italiana.

"Eu não poderia me manter calado em face de uma investigação tão carente de lógica e justiça, conduzida com preconceito e dotada de confissões sustentadas a qualquer custo."

O conhecimento de Spezi referente aos detalhes dos assassinatos, juntamente com a capacidade de romancista de Preston, faz com que "O Monstro de Florença" seja uma história envolvente do início ao fim, sem em nenhum momento perder o fôlego ou gerar desinteresse no leitor, que acompanha, muitas vezes estarrecido, o desdobramento das investigações, bem como a cobertura tendenciosa da mídia italiana.





quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Os Mortos Vivos, de Peter Straub


Capa do livro Os Mortos Vivos, de Peter Straub



Peter Straub é um dos mais renomados autores do gênero horror nos Estados Unidos. Seu sucesso rendeu-lhe a possibilidade de escrever dois livros com o mestre do horror contemporâneo Stephen King: "O Talismã" e "A Casa Negra".
"Os Mortos-Vivos" é, sem dúvida, o seu romance mais vendido no Brasil, sendo difícil encontrar exemplares de seus outros livros à venda nas livrarias. Apesar do título, que pode levar o leitor ao erro de confundir com a série de filmes "Noite dos Mortos Vivos", o romance passa longe dos clichês das histórias de mortos-vivos, nas quais comedores de cérebros ambulantes atacam uma cidadezinha. O título original "Ghost Story", ou seja, história de fantasma, é um título mais condizente com o enredo do romance. Nele, não vemos mortos recém-saídos do túmulo em busca de carne humana, mas sim uma história bem amarrada que em nenhum momento perde o fôlego, apesar das mais de 500 páginas.

Resenha de Os Mortos Vivos, de Peter Straub


Cena do filme Os Mortos Vivos, de Peter Straub. Alguns homens idosos reunidos

A história gira em torno de um grupo de amigos sexagenários que guardam um terrível segredo envolvendo uma mulher misteriosa. Esses homens fundaram um clube particular, onde se encontram quinzenalmente para contar histórias. Paralelamente, um jovem escritor de livros de horror se envolve com uma mulher misteriosa, que posteriormente se envolve com seu irmão, levando o mesmo ao suicídio. A morte do irmão do escritor, bem como a morte de um membro do grupo dos sexagenários, transforma-se em um gatilho que inicia uma série de acontecimentos bizarros na pequena cidadezinha da costa leste americana, levando o escritor a travar conhecimento com os sexagenários. Essa pequena cidade transforma-se em um palco de diversos acontecimentos sobrenaturais, aliados à chegada de uma nova mulher à cidade; com isso, monta-se o palco para a famosa luta do bem contra o mal.

Apesar de o romance conter alguns clichês, a atmosfera da cidadezinha, que passa por um inverno rigoroso, torna a história atraente. Esse inverno rigoroso cria um isolamento da cidade, bem como uma dificuldade para que ela possa gerar uma união nessa luta contra o mal. Com isso, apenas um pequeno grupo de homens composto por três velhos, um homem e um adolescente, trava combate com esse poderoso inimigo aparentemente invencível. Os sexagenários, após a morte de um membro do grupo, aliado aos sonhos compartilhados cada vez mais terríveis, decidem contatar o sobrinho do falecido, que é autor de histórias de horror.

"Talvez a parte mais estranha de minha presença aqui seja o fato de os amigos de meu tio darem a impressão de que receiam terem sido envolvidos em alguma história de horror da vida real. Pensam que sou algum profissional decidido, um especialista em sobrenatural."

Uma série de mortes misteriosas de animais e humanos justifica o medo dos sexagenários, evidenciando estar algo sobrenatural ocorrendo na pequena cidade.

"Você pisa num pedaço de chão com toda a aparência de sólido e descobre que desmorona sob seu pé; olha para baixo e, ao invés de ver relva, terra, a solidez que esperava, avista uma caverna comprida, onde coisas rastejantes correm de um lado para o outro a fim de escaparem da luz."

No transcorrer da história, não fica evidente que tipo de criaturas são essas que assolam a cidade, contudo algumas pistas surgem sobre a origem delas.

"Essas coisas não são novas [...]. Provavelmente existem há séculos... talvez há mais tempo. E pelo menos há centenas de anos que são comentadas e pessoas escrevem a respeito. Creio que são o que as pessoas costumavam chamar de vampiros e lobisomens. Provavelmente estão por trás de milhares de histórias de fantasmas."

Uma coisa fica clara: esses seres não simplesmente atacam suas vítimas como se fossem animais ferozes, mas sim gostam de levar suas vítimas à loucura antes de matá-las, como se sentissem prazer na insanidade humana.

"Eles estavam há muito tempo à espreita, esperando por uma época em que a loucura oferecesse um panorama mais concreto dos acontecimentos do que a sanidade."

O romance, como quase todo romance de horror, sustenta-se na capacidade do leitor de aceitar alguns fatos ilógicos, tais como: sendo poderosos, por que ainda não dominaram o mundo? Contudo, a partir do momento que o leitor compra a história, a mesma cumpre com o prometido, proporcionando muitos momentos de prazer e alguns sustos. Saciando, com isso, essa necessidade do homem moderno de sentir o desconhecido, a necessidade de dialogar com os seus medos mais irracionais. 
Sem dúvida, um dos melhores livros do gênero.

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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

As aventuras do Sr Pickwick, de Charles Dickens


Capa do livro As aventuras do Sr Pickwick, de Charles Dickens

Charles Dickens é indiscutivelmente um dos autores mais prestigiados da literatura universal. Os enredos de seus livros são conhecidos até por quem nunca leu um de seus volumes.

As Aventuras do Sr. Pickwick talvez seja um dos menos prestigiados livros de Dickens, não tendo o mesmo renome de Oliver Twist, David Copperfield e Grandes Esperanças. Contudo, o romance não fica atrás dos citados, tendo a capacidade de conseguir reter a atenção do leitor pelas mais de 500 páginas da obra, sem que o leitor tenha que empregar grande esforço para tanto.

Próximo ao final da leitura, o leitor sente com pesar a iminente separação. O próprio autor, nas últimas páginas do romance, confessa compartilhar dessa tristeza:

“É a sina de todos os cronistas ou autores o criarem amigos de fantasia e perdê-los, segundo o curso da arte”.

Sem dúvida, personagens tais como Pickwick e Samuel ficarão na memória dos leitores para sempre, deixando o leitor com ânsia de saber em quais aventuras esses personagens estariam metidos após o fim do romance. A história se passa no final da década de vinte do século dezenove, desenrolando-se no interior de uma Inglaterra que começava a vivenciar um crescimento demográfico e tecnológico graças à Revolução Industrial.

"Vai ver uma coisa engraçada... as pessoas de qualidade ainda não chegaram... Lugar divertido... Os funcionários superiores do arsenal da marinha não se dão com os inferiores... os funcionários inferiores não se dão com os burgueses... os burgueses não se dão com os negociantes... o comissário do governo não se dá com ninguém."

Tanto o senhor Pickwick quanto seus companheiros de aventura — Truman, Snodgrass e Winkle — percorrem o interior inglês buscando decifrar a natureza humana. Eles são membros de um clube que tem por nome Clube Pickwick, que tem por objetivo estudar a natureza humana através da observação. Com isso, os personagens viajam pelo interior inglês buscando observar e documentar os hábitos e as paisagens do interior do país como se fossem sociólogos.

"Confessamos francamente que, até o momento em que mergulhamos nos volumosos documentos do Clube Pickwick, nunca tínhamos ouvido falar em Eatanswill; e com a mesma franqueza, admitiremos haver buscado em vão uma prova da existência dessa localidade nos dias que correm. Conhecendo a profunda confiança que se deve depositar em todas as notas e declarações do Sr. Pickwick e não nos atrevendo a opor as nossas recordações às declarações expressas desse grande homem, consultamos todas as autoridades sobre o assunto de que nos poderíamos valer."

Apesar de essas visitas de campo possuírem um caráter científico, tanto apregoado pelos membros, os integrantes do clube acabam se envolvendo em situações engraçadas e até embaraçosas; contudo, essas situações não impedem os personagens de manterem a distinção e a fé na natureza humana. 

Nos lugares por onde passam, os personagens acabam se deparando com diversas histórias que lhes são narradas por diversos tipos que vão desde bêbados, encontrados em bares, até religiosos respeitados. Sendo as mesmas documentadas e narradas no livro, o leitor acaba tendo acesso a diversas tramas paralelas à história principal, sendo muitas delas de caráter místico, tais como: a história do coveiro que é levado por duendes, ou a história da cadeira que decide arranjar um marido para sua dona.

Cada membro do Clube Pickwick possui características próprias que fazem com que esse grupo seja eclético. O Sr. Pickwick, fundador do clube e espécie de mentor dos demais, aparenta ser uma figura extremamente culta e distinta, sendo em alguns casos até ingênuo. Essa ingenuidade faz com que ele se envolva em diversas situações embaraçosas, podendo-se citar: o processo iniciado pela sua senhoria, que alegou que o Sr. Pickwick havia voltado atrás em uma proposta de casamento; e as diversas armadilhas empregadas por um malandro, armadilhas essas que o Sr. Pickwick se mostra incapaz de antever.

O personagem Sam, sendo o fiel escudeiro e criado do Sr. Pickwick, se mostra, apesar de sua pouca instrução em comparação com a de seu senhor, muito mais sagaz que este, sendo responsável, muitas vezes, por livrar o Sr. Pickwick de muitas confusões. As Aventuras do Sr. Pickwick é, sem dúvida, uma excelente obra na qual o leitor tem a oportunidade de acompanhar diversas aventuras engraçadas e emocionantes, sendo um dos maiores clássicos da literatura universal.

"Despeçamo-nos do nosso velho amigo num desses momentos de felicidade sem mistura, dos que sempre encontramos alguns na vida que nos alegrem a transitória existência. Há na terra sombras negras, mas os clarões brilham com mais força, mercê do contraste. Há homens, semelhantes aos morcegos ou aos mochos, que têm melhores olhos para as trevas que para a luz. A nós, que não possuímos esse poder óptico, apraz-nos de preferência lançar o derradeiro olhar de despedida aos companheiros imaginários de muitas horas de isolamento, no instante preciso em que o rápido clarão da felicidade terrena os banha em cheio."

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terça-feira, 30 de agosto de 2016

O grande Gatsby- Scott Fitzgerald

Capa do livro O grande Gatsby- Scott Fitzgerald

Publicado pela primeira vez em 1925, O Grande Gatsby retrata a costa leste da América do Norte em plena efervescência gerada pelo progresso e pela riqueza, que seriam apenas interrompidos pela Depressão de 1929.

Nesse leste americano, com ricas famílias tradicionais juntamente com o surgimento, a todo momento, de novos-ricos, vive-se o sonho americano — sonho esse de riqueza, festas e diversões infinitas. Temos contato, durante a leitura, com toda a riqueza e glamour proporcionados pelo dinheiro. Um mundo belo e colorido, porém extremamente fútil.

"O interesse de ambos quase me comoveu, fazendo com que parecessem menos ricos e distantes; {...} quanto a Tom, o fato de ele ter uma mulher em Nova York era, na verdade, menos surpreendente do que o de haver ficado deprimido com a leitura de um livro. Algo estava fazendo com que ele mordiscasse a ponta de algumas ideias sediças, como se o seu vigor físico já não alimentasse o seu coração autoritário."

Cena do filme O grande Gatsby. Um homem de terno  olhando para a tela

"Entramos numa alta biblioteca gótica {...} — A senhora não precisa dar-se ao trabalho de verificar. Eu já o fiz. São verdadeiros. — Os livros? Fez um sinal afirmativo com a cabeça. — Absolutamente verdadeiros... com páginas e tudo. Julguei que fossem feitos de belo e durável papelão. Mas na verdade, são absolutamente reais."

Entre esse nirvana proporcionado pelo dinheiro e a poderosa metrópole americana, Nova York, temos o outro lado da moeda. Lado esse deixado de lado por não ser glamoroso ou belo. Contudo, no romance, ele não passa despercebido, porquanto os ricos, para poderem sair de um local de riqueza e chegarem a outro, são obrigados a atravessar esse território de miséria.

"Esse é um vale de cinzas — uma granja fantástica onde cinzas crescem com o trigo, convertendo-se em cumeeiras, montes e jardins grotescos; onde cinzas adquirem as formas de casas {...} homens cinzentos que se movem vagamente, quase se desfazendo em meio do ar pulverulento."

De um lado temos um mundo colorido, do outro um mundo cinza, onde homens pagam o preço pela riqueza de poucos. Neste mundo antagônico, surge Gatsby, um homem misterioso que enriqueceu do nada, sendo ao mesmo tempo reservado com respeito à sua vida privada e espalhafatoso na sua vida pública, promovendo inúmeras festas frequentadas, na sua maioria, por pessoas que nunca o viram pessoalmente. Em uma América onde o progresso criou a possibilidade de se acumularem fortunas da noite para o dia, sua figura é repleta de mistérios.

Cena do filme O grande Gatsby. Um homem e mulher dançando

"Procurem vê-lo quando ele pensa que ninguém está olhando para ele. Aposto que ele já matou alguém."

No transcorrer do romance, vamos aos poucos desvendando a figura de Gatsby, bem como o seu objetivo final. Apesar de toda a riqueza, ele não se sente satisfeito e feliz. Falta para ele reconquistar o amor de sua vida. A luta por esse amor apresenta-se comprometida, de um lado pelo fato de ela ser casada e, de outro, pelo fato de Gatsby ter passado muitos anos alimentando esse amor, fazendo com que não seja mais capaz de enxergar a mulher por trás de suas fantasias.

"Quase cinco anos. Devia ter havido momentos, mesmo naquela tarde, em que Daisy ficara muito aquém de seus sonhos — não por culpa dela, mas devido à enorme vitalidade da ilusão que ele alimentara. A ilusão tinha-se projetado além dela, além de tudo. Ele lançara-se ao seu sonho com uma paixão criadora, acrescentando-lhe incessantemente alguma coisa, enfeitando-o com todas as vistosas plumagens com que deparava."

Gatsby acabou sendo vítima de seus sonhos, sempre buscando a todo custo efetivá-los; contudo, entre o sonhar e a real efetivação dos mesmos, temos nossa imaginação, que sempre estará um passo à frente da possibilidade do real.

"Gatsby acreditou no futuro que, ano após ano, se afasta de nós. Esse futuro nos iludira, mas não importava: amanhã correremos mais depressa, estenderemos mais os braços... E, uma bela manhã... E assim prosseguiremos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente para o passado."








sexta-feira, 24 de junho de 2016

Caetés- Graciliano Ramos



Capa do livro Caetés- Graciliano Ramos

Primeiro romance de Graciliano Ramos, publicado em 1933, Caetés tem por tema o cotidiano da classe média do interior nordestino na primeira metade do século XX. O romance é ambientado no município de Palmeira dos Índios, em Alagoas. O protagonista narra em primeira pessoa suas aventuras amorosas e a tentativa de lançar-se na carreira literária.

Resenha de Caetés

Inicialmente, sua paixão pela esposa de seu chefe apresenta-se como tema central do romance. O protagonista mostra-se uma pessoa sonhadora, vivendo com um pé na realidade e outro nas suas fantasias:

"Embrenhei-me numa fantasia doida por aí além, de tal sorte que em poucos minutos Adrião se finou, padre Anastácio pôs a estola sobre minha mão e a de Luíza, os meninos cresceram, gordos, vermelhos, dois machos e duas fêmeas. À meia-noite andávamos pelo Rio de Janeiro; os rapazes estavam na academia, tudo sabido, quase doutor; uma pequena tinha casado com um médico, a outra com um fazendeiro — e nós íamos no dia seguinte visitá-las em São Paulo."

Sua paixão pela esposa de seu chefe, aliada às suas fantasias, faz com que ele romantize Luíza, vendo-a como um ser perfeito, sem realmente enxergá-la como ela realmente era:
"Entretive-me durante um mês a orná-la com abundância de virtudes raras. Além das que ela possui, e que são muitas, dei-lhe outras. E lamentei que meu espírito minguado não pudesse conceber perfeições maiores para jogar sobre ela."

Com o desenvolvimento da história, sua tentativa de escrever um romance histórico acaba se destacando. Ele busca escrever um romance sobre os índigenas que habitavam a região alagoana antes da vinda dos portugueses. Contudo, encontra muitas dificuldades para terminá-lo:

"Também aventurar-me a fabricar um romance histórico sem conhecer história! Os meus Caetés realmente não têm verossimilhança, porque deles apenas sei que existiram, andando nus e comiam gente. Li, na escola primária, uns carapetões interessantes no Gonçalves Dias e no Alencar, mas já esqueci quase tudo. Sorria-me, entretanto, a esperança de poder transformar esse material arcaico numa brochura de cem a duzentas páginas, cheia de lorotas em bom estilo."

Ao tentar efetivar essa empreitada, o autor, ao analisar os costumes da sociedade na qual está inserido, acaba encontrando semelhanças entre o povo Caeté e a sociedade de Palmeira dos Índios, mesclando-os na história:

"Escrevi dez tiras salpicadas de maracás, igaçabas, penas de arara, cestos, redes de caroá, jiraus, cabaças, arcos e tacapes. Dei pedaços de Adrião Teixeira ao ajé: o beiço caído, a perna claudicante, os olhos embaçados; para completá-lo, emprestei-lhe as orelhas de padre Anastácio. Fiz do morubixaba um bicho feroz, pintei-lhe o corpo e enfeitei-o."

Quatrocentos anos de civilização separam o povo caeté dos atuais (1933) habitantes de Palmeira dos Índios. Para o protagonista, inicialmente, aqueles selvagens em nada se assemelhavam à atual sociedade de Palmeira dos Índios. Contudo, após diversas tentativas de contar a história daquele povo, finalmente percebeu que, na verdade, estava tentando contar a história de seu próprio povo:

"Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que passava na mente de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isto, um caeté."

O protagonista, ao analisar os caminhos que tomou em sua vida, chega à conclusão de que, apesar de estarmos inseridos em uma sociedade que se considera superior às sociedades primitivas, estando em um estágio supremo da civilização, continuamos tendo os mesmos desejos e agindo, muitas vezes, como selvagens.


"Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo — uma estrela no céu, algumas mulheres na terra..."

Gosta de Graciliano Ramos ? Leia a resenha de um dos seus livros mais famosos: São Bernardo. 









segunda-feira, 23 de maio de 2016

Os demônios -Fiódor Dostoiévski



Capa do livro Os demônios -Fiódor Dostoiévski

Apesar de Dostoiévski ser reconhecidamente um dos maiores nomes da literatura mundial, ele não era bem visto na União Soviética. Seus livros causavam certo desconforto no regime, não servindo para a propagação dos ideais comunistas. Com isso, Dostoiévski foi tachado de reacionário, relegado a um segundo plano em detrimento de outros escritores contemporâneos a ele.

O desconforto criado pelos seus livros se deve ao fato de Dostoiévski procurar, em suas obras, compreender e discutir as influências das paixões e sensações na caracterização psicológica do indivíduo, podendo ser considerado um existencialista. Para ele, o ser humano é dividido em duas vertentes: uma racional e outra mística.

Vale lembrar que, no século XIX, predominavam na Europa os ideais positivistas. Ou seja, em oposição às ideias religiosas que predominavam na Idade Média — ideias essas embasadas no criacionismo —, buscava-se organizar a sociedade através do conhecimento racional e científico, tido como verdadeiro. Contudo, Dostoiévski ia na contramão desse movimento, porquanto acreditava que o ser humano não poderia apenas ser entendido através de suas ações racionais. Para ele, o ser humano possui uma vertente mística, no sentido de não ser possível compreender determinados comportamentos através da análise científica racional.

Para ele, o ser humano é dotado de subjetividade, sendo seu comportamento fruto da racionalidade juntamente com as paixões. Após ser preso por tramar contra a vida do czar russo, Dostoiévski passou alguns anos em uma prisão na Sibéria. Essa experiência resultou no livro "Recordações da Casa dos Mortos". Na prisão, Dostoiévski conviveu com perigosos detentos, muitos deles assassinos. Ao compartilhar do mesmo cotidiano com esses detentos, Dostoiévski verificou que eles não eram  diferentes das pessoas tidas como normais. Muitos desses assassinos partilhavam das mesmas paixões e desejos encontrados em todas as pessoas, sendo capazes de ser sensíveis, simpáticos e de amarem.

Para Dostoiévski, o que os diferencia do resto da sociedade é o fato de terem cruzado a linha que determina o comportamento socialmente aceito. Com isso, Dostoiévski mostrará, através de seus livros, que as paixões humanas têm um papel importante na formação humana, sendo parte constituinte do ser humano, estando, com isso, o indivíduo em constante embate entre seu lado racional e emocional.

Resenha de Os Demônios


Em uma União Soviética que propagava ideais comunistas pautados na coletividade, essa subjetividade humana não teria espaço, porquanto haveria problemas para a efetivação desse pensamento coletivista em um mundo onde predominam as paixões individuais. O romance "Os Demônios" chegou a ser censurado na União Soviética, porquanto é tido como uma crítica aos ideais revolucionários de esquerda. Dostoiévski compara a história do romance à passagem bíblica em que Jesus encontra-se com um endemoniado. Segundo ele, os indivíduos influenciados por essa ideologia de esquerda assemelham-se ao endemoniado da passagem bíblica, devido ao fato de estarem possuídos por essa ideologia, sendo que acabam, através de coerções, transformando-se em marionetes.

Segundo o personagem Chatov, os movimentos socialistas do século XIX buscavam, através da ciência e da razão, compreender todos os aspectos da existência humana. Para ele, esses movimentos acabavam por excluir de suas análises esse lado místico do homem, criando, com isso, um modelo de sociedade que excluía os sentimentos humanos tão importantes para a compreensão do ser humano.

"Povo nenhum pôde jamais se organizar sobre a terra em bases científicas e racionais; povo nenhum o conseguiu, salvo talvez pela duração de um instante, e por estupidez pura. O socialismo na sua essência é ateu, porque proclamou desde o início que se propõe a edificar uma sociedade baseada unicamente na ciência e na razão. Por toda a parte e sempre, desde o começo dos tempos, a razão e a ciência só desempenharam na existência dos povos um papel subalterno, a serviço da vida; e assim será sempre, até o fim dos séculos."

Pintura de Dostoiévski

Para Chatov, a ciência e a razão só desempenharam um papel subalterno na existência dos povos, sendo guiados, na maior parte do tempo, pelas paixões. Muitos modelos de sociedades socialistas, pautados no coletivismo, foram idealizados sem que se fosse pensado como se dariam as relações do cotidiano entre as pessoas — relações essas impregnadas de sentimentos relacionados às características individuais, características essas que, muitas vezes, não podem ser equacionadas pela razão.

"Os povos se constituem e se desenvolvem movidos por uma força diferente, uma força soberana, cuja origem se mantém desconhecida e inexplicável. Essa força é o desejo inextinguível de atingir um fim e ao mesmo tempo a negação desse fim."

As críticas ao socialismo presentes no livro, escrito décadas antes da Revolução de 1917, acabaram se concretizando no regime soviético, pautado pela violência devido à necessidade dos governantes de controlar as paixões humanas, buscando sempre suprimir o individualismo. Contudo, a crítica aos modelos de sociedades socialistas não faz com que Dostoiévski possa ser considerado um capitalista. Em diversos trechos de seus livros, ele critica o sistema capitalista, que em muitos casos busca se aproveitar das paixões humanas para lucrar mais; vide a indústria cultural e a alienação do consumo.

Dostoiévski, como um estudioso da mente humana, traz elementos indispensáveis para o debate dos rumos que a sociedade pode tomar, devendo o fato de sua visão tornar as relações sociais mais complexas ser visto como possibilidade de uma nova compreensão das relações sociais.

Leia a resenha de outros livros de Dostoiévski:



 

terça-feira, 10 de maio de 2016

O retrato de Dorian Gray- Oscar Wilde



Capa do livro O retrato de Dorian Gray- Oscar Wilde

Em uma época em que prevalecia uma literatura realista permeada de valores vitorianos, onde se buscava retratar a dinâmica social e, em muitos casos, contestá-la, surge um movimento artístico cunhado de esteticismo, pautado pela apreciação da arte por ela mesma. Ou seja: enquanto os realistas buscavam uma utilidade social para a arte, os esteticistas buscavam apreciá-la como sendo o seu único fim. Com isso, surge o termo "arte pela arte".

"Toda arte é completamente inútil."

A vida tumultuada de Oscar Wilde — ele chegou a ser preso por atos indecorosos — demonstra bem sua concepção de vida. Wilde perseguia o belo, livre de quaisquer preconceitos ou convenções sociais. Em um mundo perverso e cheio de contradições, Wilde via a arte como subterfúgio da tristeza da existência humana.

"Posso simpatizar com tudo, menos com o sofrimento [...] Com isso não posso simpatizar. É demasiado feio, demasiado horrível, demasiado aflitivo. Há algo de terrivelmente mórbido na simpatia moderna pela dor. Devemos simpatizar com a cor, com a beleza, com a alegria da vida. Quanto menos se fale das chagas da vida, tanto melhor."

Resenha de O retrato de Dorian Gray


Em determinado trecho do romance, verifica-se toda a entrega do artista na produção artística. O artista transforma-se em escravo da arte, perseguindo um ideal que transcende o nível do real. No trecho a seguir, o artista, tendo a oportunidade única proporcionada pela história, tem a oportunidade de dialogar com sua criação:

"Para mim, você se converteu na encarnação visível desse ideal invisível que nos persegue a nós, artistas, como um sonho estranho. Foi devoção o que senti por você [...]. Queria você só para mim. Só era feliz quando estava com você. [...] Havia visto a perfeição face a face e o mundo se tornou maravilhoso demais."

Muitos utopistas buscaram transformar o social no intuito de se alcançar um mundo melhor; contudo, essa busca não gerou muitos frutos. Os esteticistas, ao deixarem de lado essa busca, concentraram-se na realização humana através da arte. No romance de Wilde, o artista, Basil Hallward, encontra no jovem Dorian Gray a perfeição física e a pureza mental muitas vezes somente encontradas na juventude — época em que os vícios ainda não corromperam a beleza humana. Com isso, decide imortalizá-lo em um retrato.

Ao término da confecção do retrato, surge o amigo de Basil, Sr. Henry Wotton. Ao contrário de Basil, que vive para a arte, o Sr. Wotton vive para seu prazer, manipulando e destruindo tudo que estiver no seu caminho. Ao se deparar com o jovem Gray, o Sr. Wotton vislumbra a possibilidade de, através de jogos psicológicos, moldá-lo e corrompê-lo.

"Estava de fato convencido de que o método experimental era o único pelo qual se podia chegar a uma análise científica das paixões, e Dorian Gray era, certamente, um indivíduo feito para as suas mãos e que parecia prometer ricos e frutuosos resultados."

"Influenciar uma pessoa é transmitir-lhe a nossa própria alma. Ela já não pensa com seus pensamentos naturais, nem arde com suas paixões naturais. As suas virtudes não são reais para ela. Os seus pecados, se é que existem pecados, são emprestados. Ela se converte em eco de uma música alheia, em ator de um papel que não foi escrito para ela."

O Sr. Wotton vai aos poucos corrompendo o jovem Dorian. Através de jogos psicológicos, destrói a pureza do jovem, lançando-o nos maiores vícios e quebrando todos os tabus sociais. Dorian passa a viver para o prazer, seja ele qual for, sem preocupar-se com os efeitos dessa busca sobre si mesmo e sobre os outros.

"Nunca procurei a felicidade. Quem no mundo deseja a felicidade? Procurei o prazer."

Retrato de Oscar Wilde

Sua jovem noiva, uma atriz pobre que o encantou pelo seu talento e beleza, comete suicídio após ser abandonada por Dorian. Ele demonstra não sentir remorsos pelo ocorrido, como se tivesse perdido a capacidade de medir as consequências de seus atos.

Todas essas experiências vivenciadas de forma inconsequente por Dorian não degradaram sua beleza física e mental. Ao passar dos anos, Dorian continuava jovem e sadio. Isso se deu graças a um pacto que o mesmo fez, ainda jovem, ao vislumbrar seu retrato finalizado por Basil. Ao contemplar o quadro, percebe que sua beleza transportada para a tela permanecerá intacta apenas ali, enquanto ele envelhecerá e perderá sua juventude.

"Como é triste! Tornar-me-ei velho, horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre jovem."

Diante disso, Dorian faz um pacto, ofertando sua alma em troca de que, em vez dele, seu retrato suporte o peso do tempo e dos vícios adquiridos. Com isso, o retrato passa a envelhecer e guardar as marcas dos vícios de Dorian, enquanto ele permanece jovem e sadio. Ao fazer esse pacto, Dorian não simplesmente se livrou da degradação física, mas também de sua alma, porquanto nossa degradação serve de alerta para que possamos repensar nossa existência.

Com o tempo, a existência do retrato atormenta Dorian, porquanto contemplá-lo é como se estivesse contemplando sua própria alma. Dorian decide destruir o retrato para recuperar seu sossego.

"Mataria o passado e tornar-se-ia livre. Mataria aquela monstruosa alma visível e, sem suas hediondas advertências, recuperaria o sossego."

Contudo, Dorian não havia compreendido que, na verdade, seu retrato continha sua humanidade e, sem ele, Dorian não existiria.





quarta-feira, 23 de março de 2016

Nihonjin - Oscar Nakasato


Capa do livro Nihonjin - oscar Nakasato


De fácil leitura, utilizando-se de uma prosa simples e direta, o romance consegue prender a atenção do leitor, que acompanha as aventuras e desventuras dos japoneses em terras brasileiras. O Brasil apresentava-se para eles como um país de idioma e cultura estranhos que vivenciava, no início do século XX, a formação de um caldeirão cultural, fruto da crescente imigração estrangeira atraída pela necessidade de mão de obra nas plantações de café.

O fim da escravidão em 1888, aliado ao desenvolvimento do cultivo do café no interior paulista, gerou a crescente necessidade de mão de obra nas lavouras, sendo essa demanda preenchida por imigrantes europeus e asiáticos que desembarcavam nos portos brasileiros em busca de oportunidades.

Resenha de Nihonjin 


O romance é narrado por um neto de japoneses que busca, através do relato de seus parentes, compreender suas origens por meio da reconstrução da trajetória de sua família em terras brasileiras.

Para os japoneses que se dirigiam para as nossas terras, o Brasil aparentava ser uma terra estranha repleta de riquezas, necessitando apenas de pessoas dispostas a trabalhar com afinco. Muitos dos que vieram acreditavam que permaneceriam apenas alguns anos em terras brasileiras, tempo suficiente para juntarem um determinado capital que seria empregado em alguma atividade lucrativa no Japão:

Hideo prosseguiu falando, agora sobre os seus projetos pessoais: teria uma loja de utensílios domésticos em Tóquio ou Osaka”.

A expectativa de adquirir capital, demonstrada pelos imigrantes, era baseada na confiança que depositavam na capacidade de decisão de seu imperador, porquanto ele incentivou a imigração de japoneses para o Brasil, afirmando ser possível ganhar dinheiro rapidamente no país do "ouro verde". Contudo, a realidade encontrada pelos imigrantes fez com que muitos se desiludissem.

O imperador do Japão enganava os agricultores pobres e os desempregados da cidade, dizendo que deveriam imigrar porque ganhariam dinheiro rapidamente no Brasil. Mas que, na verdade, era um projeto para expulsar a população pobre, pois havia muitos excedentes no país”.

Ao contrário do que esperavam, os japoneses acabaram sendo explorados nas fazendas de café, e o pouco que ganhavam era consumido nos armazéns das fazendas, que vendiam os alimentos a preços abusivos. Após o sucesso da exportação do café brasileiro, a depressão americana de 1929 fez com que os barões do café brasileiros fossem obrigados a reinvestir o capital gerado pelo café em atividades industriais na cidade de São Paulo, fato que gerou um êxodo da população do campo para a cidade. Com isso, surgiram os primeiros bairros operários de São Paulo, entre eles a Liberdade, sendo a maior comunidade japonesa no Brasil.

Apesar de todas as dificuldades, fica evidente a capacidade de perseverança e adaptação dos imigrantes japoneses às diversas reviravoltas econômicas ocorridas no final do século XIX e início do século XX. A crise econômica japonesa impulsionou a imigração para o Brasil; posteriormente, a crise do café impulsionou o êxodo do campo para a cidade. Apesar de todas essas mudanças, os imigrantes japoneses demonstraram grande capacidade de adaptação e um forte sentimento de união, buscando ao máximo preservar sua cultura.

Pode-se citar a repulsa à miscigenação como um dos fatores determinantes para a manutenção da cultura japonesa em terras brasileiras. Não era aceitável o casamento com pessoas de fora da comunidade, sendo o ato considerado uma ofensa sem perdão:

Foto de Imigrantes japoneses trabalhando em uma fazenda

“lamentava que a caçula de Oshiosun estivesse namorando um gaijim, que era vergonha para a família, que se fosse sua filha não permitiria, que se houvesse teimosia a expulsaria de casa, e então, seria como se ela tivesse morrido”.

Contudo, o surgimento de novas gerações, nascidas em solo brasileiro sem nunca terem estado no Japão, fez com que parte dessa cultura japonesa fosse sendo gradativamente modificada. Muitos jovens já incorporavam os costumes da cultura brasileira:

uma nova vida, que não era a vida japonesa nem a vida brasileira”.

Esse hibridismo cultural gerou conflitos dentro da comunidade japonesa, conflitos que resultaram em mortes e foram determinantes para a desunião de diversas famílias. O romance é finalizado com a decisão do narrador de migrar para o Japão. Seu avô, que no início do século havia realizado a trajetória inversa, demonstrou insatisfação com a decisão de seu neto, pois ele conhecia a dificuldade de se adaptar a uma nova cultura.

Contudo, ao contrário de seu avô, o rapaz não decidiu migrar somente devido a questões econômicas; ele buscava encontrar no Japão suas origens, descobrir sua identidade, acreditando ser possível encontrá-la no Japão:

Disse-lhe que o ato era ida, mas tinha para mim um sentido de retorno”

A busca pela sua identidade o motivou a tentar reconstruir a trajetória de seus ancestrais; contudo, isso não foi suficiente. Sua busca o levou a fazer o caminho inverso de seus antepassados, buscando encontrar no Japão as peças que faltavam para completar o quebra-cabeça de sua vida.





quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Fogo Morto- José Lins do Rego

Capa do livro Fogo Morto- José Lins do  Rego


José Lins do Rego foi um dos maiores nomes da literatura brasileira. Devido à conjuntura da época, os escritores brasileiros tinham por responsabilidade não somente escrever boas histórias, mas também discutir a realidade brasileira, porquanto não tínhamos sociólogos e antropólogos consolidados. Com isso, diversos intelectuais tomaram para si a responsabilidade de discutir a realidade social de um país de tamanho continental que estava dando seus primeiros passos dentro de uma realidade republicana democrática.

Rego faz parte de uma geração literária, pós-Semana de 22, denominada Regionalismo de 30. No século XIX, a maioria dos romances eram ambientados na antiga capital brasileira ou, quando muito, em São Paulo. Apesar de ser de vital importância a compreensão das relações que ocorriam no antigo centro político brasileiro, o país não se resumia ao Sudeste. Para se compreender a nação brasileira, fazia-se necessário o diálogo com outras regiões do país.

Rego fez parte de uma geração de escritores nordestinos que tomaram para si a missão de desvelar o Nordeste brasileiro, podendo citar os romances: Os Sertões, de Euclides da CunhaCapitães da areia, de Jorge Amado e Caetés de Graciliano Ramos.
O romance Fogo Morto, ambientado na Paraíba, tem por tema a decadência dos engenhos nordestinos devido ao surgimento das usinas produtoras de açúcar. Os engenhos passaram a ser simples fornecedores da matéria-prima cana, ficando a produção do açúcar a cargo das usinas. Esse enfraquecimento dos engenhos estava relacionado ao avanço do capitalismo moderno, que substituiu uma produção baseada na servidão por uma produção baseada no trabalho industrial assalariado.

Resenha de Fogo Morto


A história inicia-se na primeira metade do século XX com a decadência do engenho e, posteriormente, regride para a segunda metade do século XIX para contar como se deu o surgimento e a prosperidade do Engenho Santa Fé. O título do romance é uma referência à decadência dos engenhos brasileiros devido ao desenvolvimento da industrialização no país. Os engenhos, antes produtores da maior riqueza do país até o século XVII — o açúcar —, passaram, com o surgimento das usinas, apenas a serem responsáveis pelo fornecimento da cana. Com isso, os engenhos perderam a sua força, devido ao fato de se tornarem meros fornecedores de matéria-prima.

Agora viam o bueiro do Santa Fé. Um galho de jitirana subia por ele. Flores azuis cobriam-lhe a boca suja. — E o Santa Fé quando bota, Passarinho? — Capitão, não bota mais, está de fogo morto.”

O fim da escravidão contribuiu de forma decisiva para o declínio dos engenhos nordestinos, pois possibilitou a difusão do trabalho assalariado no país. Os engenhos tinham por característica a centralidade dos poderes e tomadas de decisões nas mãos do senhor do engenho, que o controlava com mãos de ferro, se utilizando, muitas vezes de forma cruel, de mão de obra escrava.

O romance é dividido em três partes, sendo um personagem destacado em cada uma delas. Na segunda parte do romance, o surgimento e declínio do Engenho Santa Fé é narrado tendo como destaque o personagem Lula de Holanda. Lula, educado na cidade, casou-se com a filha do Senhor de Engenho, passando a administrá-lo após a morte de seu sogro. Lula não demonstra qualquer intimidade com a vida do engenho, fato que fez com que não conseguisse geri-lo da melhor forma. Sendo defensor da escravidão e cruel com seus escravos, Lula encontra dificuldades para se adaptar ao trabalho livre; devido à crueldade com que os escravos eram tratados na sua administração, os mesmos não permanecem no engenho após a abolição.

Pintura de um engenho nordestino

Na primeira parte do romance, somos apresentados ao Mestre Amaro. O personagem José Amaro, artesão de profissão, habita as terras do engenho Santa Fé desde a infância. Apesar de habitar as terras do senhor do engenho, não paga aluguel e não presta serviços regularmente para o dono das terras como era costume, subsistindo através da confecção de selas. Com o desenvolvimento do capitalismo, os artesãos perderam sua força e prestígio, sendo seu trabalho substituído por produtos manufaturados. Mestre Amaro vivencia essa decadência na diminuição da demanda por seu trabalho. A decadência do engenho é a decadência de Mestre Amaro.

O personagem vai adentrando em um estado depressivo que só é superado após ter contato com um grupo de cangaceiros que age na Zona da Mata. Os cangaceiros não respeitam a lei e se julgam defensores dos oprimidos. Através deles, Mestre Amaro vislumbra a possibilidade de mudança. Contudo, essa esperança leva o mestre Amaro a quase um estado de loucura, pois o mesmo começa a se desprender da realidade, vivendo na ilusão de que os bons tempos seriam restaurados.

A terceira parte do romance é centralizada no personagem Vitorino Carneiro da Cunha. Um personagem difícil de compreender, devido ao fato de o mesmo estar completamente alheio ao que acontece a sua volta. O personagem pode ser comparado ao personagem Dom Quixote, de Cervantes. Enquanto Dom Quixote perseguia moinhos que acreditava ser gigantes, Vitorino perseguia inimigos que o queriam destruir; contudo, esses inimigos na verdade não estavam preocupados com Vitorino, sendo ele considerado por eles um "velho louco", digno de pena.

O romance possui uma característica pessimista, pois fica evidente que os personagens principais estão fadados ao fracasso. Tanto o engenho quanto Mestre Amaro e Vitorino estão em decadência; todos fazem parte de um Nordeste que estava chegando ao fim. Através dos romances de José Lins do Rego, podemos compreender a diversidade natural e cultural presente no Nordeste, podendo ser dividido em Zona da Mata e Sertão.

A passagem do romance em que Sr. Tomás, dono do engenho Santa Fé, viaja para o Sertão em busca de um escravo fugido evidencia a diversidade cultural presente na região. O Sr. Tomás, ao chegar no Sertão, se depara com um Nordeste diferente do seu. Acostumado a ser respeitado e temido, não encontra esse respeito no Sertão. Após algumas andanças, foi alertado de que teria dificuldades de recuperar seu escravo, porquanto no Sertão não se aceitava a ideia de um homem ser escravo de outro. A passagem demonstra serem as relações sociais diferentes na Zona da Mata e no Sertão.

Fogo Morto retrata a infância de José Lins do Rego, possuindo o romance um tom saudosista. Contudo, o fato de José ter sido neto de senhor do engenho não fez com que o mesmo escondesse as misérias e mazelas presentes nesse Nordeste da Zona da Mata, proporcionando, com isso, ao leitor um romance intenso e marcante referente a um importante pedaço do Brasil.





Gabriela, Cravo e Canela - Jorge Amado

Capa do livro Gabriela, Cravo e Canela -  Jorge Amado

Jorge Amado, em Gabriela, Cravo e Canela, nos presenteia com uma saborosa crônica de costumes ambientada na Bahia, que presenciava um crescimento econômico impulsionado pela produção do cacau.
O sul da Bahia, em fins do século XIX, presenciou lutas sangrentas pela posse da terra e o surgimento de ricos produtores de cacau, intitulados "coronéis", que, através da violência e utilizando os serviços de jagunços, desmatavam e plantavam cacau, que era amplamente exportado para o estrangeiro.

Assim era Ilhéus, naqueles idos de 1925, quando floresciam as roças nas terras adubadas com cadáveres e sangue e multiplicavam-se as fortunas.”

Resenha de Gabriela, Cravo e Canela

Jorge Amado afirma, nas primeiras páginas, existir um descompasso entre o avanço técnico-científico e o avanço nos costumes da sociedade. Para ele, o avanço técnico–científico proporciona a possibilidade do progresso e do novo; contudo, os hábitos de determinada sociedade evoluem mais lentamente, o que gera uma tensão entre o velho e o novo. A cidade acaba sendo o palco desses embates, devido ao fato de o progresso, a todo o momento, buscar transformar sua fisionomia.

Modificava-se a fisionomia da cidade, abriam-se ruas, importavam-se automóveis, construíam-se palacetes, rasgavam-se estradas, publicavam-se jornais, fundavam-se clubes, transformava-se Ilhéus. Mais lentamente, porém, evoluíam os costumes, os hábitos dos homens. Assim acontece sempre, em todas as sociedades.”

Ilhéus, bem como outras cidades do sul da Bahia que se desenvolveram graças ao cultivo do cacau, experimenta um crescimento populacional vertiginoso. Diversas famílias nordestinas se deslocam para lá fugindo da seca. O local onde costumavam se assentar ao chegarem à cidade era chamado pelo povo de "mercado de escravos". Os coronéis, necessitados de mão de obra para a lavoura, escolhem seus empregados como se estivessem escolhendo escravos, devendo os retirantes aceitar qualquer proposta feita. Contudo, muitos retirantes chegavam a Ilhéus alimentados pelo sonho de enriquecer.

A prosperidade da zona do cacau, porém, estava reservada aos poderosos coronéis cercados de jagunços, que controlavam não somente a economia como também a política daquela região. A chegada de Mundinho Falcão a Ilhéus abala o poder dos coronéis, porquanto, ao contrário dos retirantes, Mundinho — proveniente de uma família rica e influente do Sudeste, proprietária de fazendas de café — chega a Ilhéus amparado pelo poder de sua família, influente na política brasileira da República Velha.

Desenho de Jorge Amado

Mundinho estabelece-se em Ilhéus como exportador de cacau. Contudo, depara-se com a dificuldade de escoar a produção, devido ao fato de a cidade não possuir uma barra para a atracação dos navios, sendo toda a produção escoada pela cidade de Salvador. Esse fato diminui seus lucros, além de criar uma dependência de Salvador. Mundinho luta pela construção de uma barra em Ilhéus; contudo, essa construção vai contra os interesses de políticos baianos que buscam manter Ilhéus dependente. Cria-se, com isso, uma divergência de interesses, devido ao fato de os coronéis do cacau — em especial o Coronel Ramiro Bastos, homem mais poderoso da cidade — apoiarem o governo baiano.

Cria-se um embate: de um lado, Mundinho simboliza o progresso; do outro, Ramiro e os coronéis do cacau simbolizam o velho e o já estabelecido. Entre as novidades que surgem na cidade, pode-se citar a construção de estradas, uma empresa de transporte, a criação de grêmios, bibliotecas, além de casas com arquiteturas modernistas. Por trás de todas essas novidades está Mundinho, que posteriormente decide criar um partido para disputar as eleições municipais, fazendo oposição ao atual governo, tido como retrógrado.

Aos poucos, Mundinho e o progresso começam a conquistar a cidade. Contudo, velhos costumes ainda imperam em Ilhéus, fazendo contraste com o novo. Pode-se citar o duplo homicídio cometido por um importante coronel da cidade que, chegando em sua casa, se deparou com sua mulher na cama com outro homem. Apesar de confessar os homicídios, o mesmo é tratado com respeito e admiração pela cidade, que aprova seu ato.

Assim era em Ilhéus: honra de marido enganado só com sangue poderia ser lavada.”

Gabriela: a mulher indecifrável


Mulher em pose sensual

É nessa Ilhéus, agitada por disputas entre o velho e o novo, que chega a retirante Gabriela. A coincidência de o sírio Nacib, comerciante, necessitar de uma cozinheira para seu bar — um dos mais movimentados de Ilhéus — faz com que Gabriela fique em evidência, agitando ainda mais a cidade. Gabriela é indecifrável; segundo um dos personagens, sua beleza e simpatia contagiam a todos. Seu jeito simples e despretensioso é capaz de desarmar qualquer um. Fazia tudo o que sentia vontade, como se fosse livre para experimentar a felicidade, não se importando com o que era socialmente aceito.

Em uma época em que as mulheres eram extremamente oprimidas pelos maridos, sem possuírem os mesmos direitos, Gabriela quebra todos os paradigmas da época. Em determinado trecho, após se casar com o sírio Nacib, ela acaba traindo-o. Ao refletir sobre o ocorrido, Gabriela questiona o fato de a infidelidade ser permitida somente aos homens:

 “Havia uma lei, não era permitido. Só homem tinha direito, não o tinha a mulher?”.

Era socialmente aceito que os homens tivessem amantes; contudo, as mulheres não tinham esse direito. O fato de o sírio não matar Gabriela e seu amante, pedindo apenas o divórcio (anulação do casamento), é comemorado pelos entusiastas do progresso, que começam a ver mudanças nos costumes da sociedade ilheense.

Com isso, temos o embate entre o velho e o novo; os costumes antigos e a modernidade nesse maravilhoso romance do mestre Jorge Amado. 

Gosta de Jorge Amado ? Leia a resenha de outro clássico de Jorge Amado: Capitães da Areia.