A inexistência de uma unidade nacional, tanto no que se refere aos aspectos naturais quanto aos aspectos sociais, é tema da obra de Euclides da Cunha. Em "Os Sertões", Euclides, através de uma análise geográfica, antropológica e sociológica dos processos que culminaram na formação do Estado brasileiro republicano — em especial do Nordeste — contribui para o debate em torno da pluralidade natural e social de nosso país.
Publicado em 1902, sendo fruto das inquietações do autor referentes à recente Proclamação da República, "Os Sertões" colocou em xeque a real efetivação dos ideais republicanos em nosso país.
"A pique ainda das lamentáveis consequências de sanguinolenta guerra civil... demonstrará a inadaptabilidade do povo à legislação superior do sistema político recém-inaugurado..."
O autor utiliza a Guerra de Canudos para evidenciar as contradições presentes em nosso território, denunciando a ação do recente governo republicano em Canudos — ação essa pautada pela violência e pela falta de qualquer conhecimento da real situação do povo sertanejo que habitava naquele local.
"Eram realmente, fragilíssimos, aqueles pobres rebelados... Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain: e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala."
Resenha de Os Sertões
O livro pode ser dividido em três partes principais, sendo abordados na primeira parte os aspectos naturais do nosso território e, em especial, do Nordeste. Nesta parte, Euclides busca, através dos poucos conhecimentos geográficos existentes na época, evidenciar as diferenças naturais presentes em nosso país. Na segunda parte, o autor aborda os aspectos raciais dominantes na formação do povo brasileiro. Esta parte do livro deve ser analisada com muitas ressalvas, porquanto o autor, ao analisar a diversidade social brasileira, apoia-se em um determinismo muito propagado na época.
"...reflete, na índole e nos costumes das outras raças formadoras, apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente."
Através desse determinismo, o autor relacionará a capacidade intelectual do povo brasileiro aos processos de mestiçagem ocorridos durante a colonização. Amparado no darwinismo social, o autor enxerga uma inferioridade e justifica essa inferioridade de determinadas raças em contraposição a outras nos processos de evolução. Outro fator predominante na constituição física e intelectual do povo brasileiro, para ele, é o meio físico no qual o indivíduo está inserido.
Essas teses deterministas estão atualmente ultrapassadas, porquanto é consenso nas ciências sociais o papel predominante das relações sociais na constituição intelectual do indivíduo, sendo essas relações dinâmicas e repletas de possibilidades. Euclides, nessa segunda parte, aponta a existência de dois tipos de homens brasileiros: o mestiço neurastênico do litoral e o mestiço do sertão. Segundo ele, o mestiço do sertão, devido às dificuldades de sobrevivência e ao isolamento proporcionados pelo meio físico, tornou-se um tipo específico de homem, sendo um homem forte. As provações geradas pelo meio físico, bem como o isolamento geográfico, o tornaram diferenciado do resto do país.
"O sertanejo é, antes de tudo, um homem forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral".
Na terceira parte do livro, o autor narra a Guerra de Canudos. Buscando desmistificar o conflito, o autor mostra o resultado da falta de unidade nacional presente em nosso território. De um lado, temos brasileiros em condições de miséria, abandonados pelo poder público. De outro, temos as forças governamentais distantes dos problemas daquele povo, prontas para destruir qualquer tipo de insurgência.
Sendo engenheiro civil de formação, Euclides adquiriu um conhecimento aprofundado referente ao conflito, porquanto o cobrira para um jornal de São Paulo. Segundo Euclides, ao contrário do que se imaginava no Sudeste, o povo de Canudos não oferecia qualquer ameaça à recente República. Seu líder, Antônio Conselheiro, não passava de um desequilibrado, sem nenhum tipo de contato político relevante. Seus homens não possuíam nenhum tipo de armamento pesado e os habitantes de Canudos viviam em estado de miséria. A miséria e a esperança quase cega em um futuro melhor os levaram a fundar Canudos e a seguirem Conselheiro.
O recente governo republicano, que pregava uma unificação nacional, não foi capaz de enxergar o surgimento de Canudos — e de tantas outras "favelas" — como sintoma de um problema maior, relativo à massa de brasileiros abandonados pelo Estado, que deveria estar proporcionando formas de sobrevivência e desenvolvimento social para essas pessoas.
Publicado no início do século XX, o romance poderia servir de alerta para um Sudeste tão distante dos problemas do Nordeste brasileiro e das necessidades da grande massa de desfavorecidos espalhados pelo nosso território que acabam sendo esquecidos. Após cem anos e alguns avanços, continuamos a sonhar com uma verdadeira unificação nacional e um único Brasil, sendo a nossa realidade diversos países dentro de um país repleto de desigualdades.
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