domingo, 25 de outubro de 2015

As Ilusões Perdidas- Honoré de Balzac



Capa do livro As Ilusões Perdidas- Balzac


"As ilusões perdidas", romance de H. de Balzac publicado na primeira metade do século XIX, revela a dura realidade dos grandes centros da Europa daquela época. O romance tem por objetivo demonstrar a realidade em uma época em que predominava uma literatura romântica. Até meados do século XIX, a literatura europeia era dominada por um estilo de composição tido como romântico, que buscava idealizar a realidade, ou seja, adequá-la aos ideais buscados pela sociedade da época. 

Resenha de As Ilusões Perdidas


Fotografia de Balzac

Balzac pode ser considerado um dos precursores de uma literatura realista que, em contraposição ao romantismo da época, buscava retratar o real. O romance “As ilusões perdidas”, como o próprio título sugere, despeja um balde de água fria nos românticos da época, mostrando uma Paris longe de ser glamorosa, sendo problemática, caótica e corrompida. Evidenciam-se essas características na seguinte passagem do romance:

Em Paris, os conjuntos das construções e das atividades urbanas chamam logo a atenção: o luxo das lojas, a altura das casas, a afluência das carruagens, os permanentes contrastes que apresentam o extremo luxo e a extrema miséria. [...] Para o jovem poeta habituado a encontrar eco para cada um dos seus sentimentos, um confidente para todas as suas ideias, uma alma para compartilhar as suas menores sensações, Paris ia ser um espantoso deserto”.

O autor não poupa a imprensa da época, mostrando que os jornais da cidade, longe de serem meios de propagação de informações e discussões, acabavam sendo utilizados como um negócio. Nas palavras de um dos personagens do romance:

“O jornal, em vez de ser um sacerdócio, tornou-se um meio para os partidos, e de um meio passou a ser um negócio. Não tem fé nem lei. Todo jornal é uma loja onde se vendem ao público palavras da cor que deseja”.

Fotografia de Paris no século dezenove

O protagonista do romance, Luciano, deixa a província em busca de fama em Paris através de sua pena, levando consigo um livro recém-escrito e alguns poemas. Luciano imaginava que tudo correria da melhor forma possível, devendo o seu talento ser reconhecido instantaneamente, mas não é isso que ocorre.

Na capital, ele encontra uma sociedade mais preocupada com títulos e vestuários do que com talento. Um lugar onde, sem a ajuda de poderosos, nada poderia ser conquistado. O fato de Luciano ser filho de um farmacêutico fez com que todas as portas se fechassem para ele. É importante lembrar que a França da época passava por um período de restauração da monarquia, ou seja, após a queda de Napoleão, a monarquia voltou a reinar no país e os ideais monárquicos foram restaurados.

Após a queda inicial, Luciano foi obrigado a trabalhar em um dos muitos jornais de Paris. A cidade, ao longo do romance, vai corrompendo o jovem poeta, que acaba abrindo mão de seus ideais, empregando a sua pena conforme a possibilidade de lucro. Um fato que ilustra essa corrupção se dá nas críticas aos espetáculos escritas pelo jornal no qual ele trabalha. O jornal ganha uma participação no lucro dos espetáculos, fato que leva os jornalistas a escreverem críticas positivas; mas, quando os donos dos teatros deixam de pagá-los, os jornalistas escrevem críticas condenando o espetáculo, muitas vezes já haviam escrito críticas favoráveis — problema facilmente resolvido com a utilização de um pseudônimo.

O dinheiro ganhado por Luciano no jornal é rapidamente torrado em festas e mulheres, fazendo com que Luciano fosse obrigado a pedir ajuda financeira ao seu cunhado, que ficou na província. Chegando, em alguns momentos, a falsificar a assinatura do cunhado no intuito de conseguir empréstimos. Fato que, posteriormente, leva o cunhado à falência.

O cunhado do poeta pode ser considerado sua antítese. Enquanto Luciano vive em Paris, seu cunhado se empenha, através de um trabalho árduo e honesto, na descoberta de uma pasta que facilitaria a confecção de livros, barateando-os. 

O romance de Balzac pode ser considerado uma das primeiras obras de cunho realista escritas na Europa, sendo uma crítica tanto à aristocracia quanto à burguesia: sendo a primeira criticada por sua hierarquização baseada em títulos, onde o mérito e o talento ficam relegados a um segundo plano; e a burguesia, que busca de forma desenfreada o lucro, tendo como motivo e finalidade de sua existência o acúmulo de capital.

Gosta de Literatura Clássica ? Leia a resenha de grandes clássicos da Literatura europeia:

Grandes Esperanças, de Charles Dickens;
O sonho de um Homem Ridículo, de Fiodor Dostoievski;
O processo, de F. Kafka;
Notas do Subsolo, de Dostoievski;
O grande Gatsby- Scott Fitzgerald;
Pais e Filhos - Ivan Turgueniev.





    

domingo, 18 de outubro de 2015

Pais e Filhos - Ivan Turgueniev



Capa do livro Pais e Filhos - Ivan  Turgueniev. Vermelha


O romance de Turguêniev tem por temática a transição, ocorrida na Europa, de um pensamento econômico, político e cultural pautado em uma lógica feudal baseada em laços de subordinação tidos como naturais. Nesse modelo, a posição do indivíduo na sociedade é definida por leis de sangue tidas como divinas, tendo como base desse sistema a servidão. Essa lógica transita para um pensamento capitalista, sendo a sociedade baseada na capacidade do indivíduo de acumular capital e tendo como base do edifício social o conhecimento científico positivo, em contraposição ao pensamento religioso dominante no período feudal.

Com isso, houve a mudança de uma produção de bens baseada na servidão para uma produção baseada no trabalho assalariado, devido à necessidade capitalista de circulação de riquezas através do poder de compra, desenvolvendo um mercado consumidor. Esta transição gerou uma nova reorganização da sociedade europeia, tanto econômica quanto política e culturalmente, devido ao fato de a organização social passar a se basear na acumulação de capital, sendo o desenvolvimentismo técnico-científico o motor desse processo.

Apesar de esses processos estarem a todo o vapor, em meados do século XIX, na Europa, a Rússia começava a participar ativamente dessa transição. Na época, a Rússia tinha um acanhado desenvolvimentismo industrial e um sistema econômico baseado na agricultura, além de um sistema político retrógrado: o tsarismo. Entretanto, a Rússia começava a se adequar à nova ordem europeia, podendo-se destacar o fim da servidão, que gerou o trabalho assalariado. Com isso, o mujique, que antes era tido como um servo, passou a ser encarado como igual, partilhando de uma relação de trabalho com o que antes era o seu senhor.

Resenha de Pais e Filhos


Cena da peça Pais e Filhos. Homens conversando em uma mesa

No romance, vemos como este processo modificou as relações sociais no país através do embate ideológico entre os pais, homens aristocratas partidários de um sistema social baseado em laços naturais quase místicos, e os filhos, jovens que se intitulam niilistas. Estes têm por premissa a negação de qualquer tipo de convenção social imposta por qualquer tipo de autoridade, buscando enxergar o mundo com uma visão crítica, baseando-se apenas no conhecimento científico positivista.

"Niilista é o homem que não se curva perante nenhuma autoridade e que não admite como artigo de fé nenhum princípio, por maior respeito que mereça".

Esses jovens se interessam apenas pelo conhecimento científico, desprezando qualquer experiência que não possa ser observada, descrita e quantificada pela ciência, como, por exemplo, as emoções e a arte. O personagem Bazarov, niilista, ao ser questionado sobre a importância da arte, afirmou ser um bom químico vinte vezes mais útil que um poeta. Com isso, vemos a influência do positivismo no pensamento do personagem, ao acreditar ser possível, através da ciência, compreender e interpretar a realidade, podendo tudo ser explicado pelas leis da natureza.

"Que relações misteriosas são essas entre o homem e a mulher? Nós, fisiologistas, conhecemo-las muito bem. Estude um pouco a anatomia do globo ocular: encontrará ali algo que signifique um olhar enigmático? Tudo não passa de romantismo, fantasia, podridão, artifício".

Outro frequente motivo de discussões era a decadência da aristocracia neste novo sistema, devido à transição de uma sociedade que tinha a aristocracia como modelo do que era socialmente aceito para uma sociedade tendo a ciência como base da organização social. Segundo o personagem defensor da aristocracia, a personalidade e a noção de dignidade presente na aristocracia mantêm sólido o edifício social, sendo a sociedade construída e civilizada graças à aristocracia.

Bazarov, por sua vez, nega a utilidade dessa aristocracia que não tem, segundo ele, utilidade prática para a sociedade, sendo somente aceitável para o niilista algo que traga benefícios para a evolução da espécie humana. Segundo ele, a ciência não é importante por si só, mas sim pelo uso positivo da mesma. Sendo assim, todas as convenções sociais que não geram uma transformação humana racional são dispensáveis, devendo a sociedade se pautar somente no conhecimento positivista.


Percebe-se nos niilistas uma negação de tudo que não seja científico, comprovado e perfeitamente posto em prática. Para eles, os sentimentos não têm importância; inclusive, muitas vezes buscam, através da ciência, explicá-los de modo a desmistificá-los. Contudo, Bazarov acabou, de certa forma, traindo sua ideologia, devido ao fato de em determinado momento ter se desviado de sua busca científica positiva após ter um contato mais íntimo com uma condessa que, de certa forma, representava o modo de vida aristocrático.

Diante disso, fica o questionamento: será possível pensar em uma sociedade somente pautada na ciência positiva? Uma sociedade sem sentimentos, sem arte ou amor? No século XIX, muitos acreditavam ser possível através da ciência positiva; contudo, este pensamento levou a uma desumanização do ser humano, pois muitos dos sentimentos e sensações são partes constituintes do que nos faz seres humanos, podendo uma busca racional totalmente alheia aos sentimentos levar a humanidade ao caos e ao surgimento de ideologias racionalmente compreendidas, mas que ferem nossos sentimentos, como o nazismo e o fascismo.

Gosta de clássicos da Literatura russa ? Leia outras resenhas da era de ouro da literatura russa. 

O sonho de um Homem Ridículo, de Fiodor Dostoievski;
Notas do Subsolo, de Dostoievski;
Os demônios -Fiódor Dostoiévski;
Um jogador- Dostoiévski
Crime e castigo - Dostoievski.


 





quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Admirável mundo novo, de Aldous Huxley



Capa do livro Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.  Letras grandes e fundo roxo com desenhos de homens caminhando


Em Admirável Mundo Novo, nos deparamos com uma sociedade futurística baseada numa mistura de autoritarismo com tecnologia de ponta, que dá origem a seres humanos alienados e comprometidos apenas com a busca pelo prazer imediato e superficial, através de orgias, drogas e entretenimento de massa. Trata-se de uma sociedade baseada no consumo de massa, tendo Ford como seu deus, que privilegia o coletivo em detrimento do individual e que desacredita qualquer laço afetivo que possa prejudicar a consciência coletiva.

Resenha de Admirável mundo Novo

Fora dos limites desse mundo novo, encontramos os selvagens: pessoas que não participam desse mundo devido a questões naturais desfavoráveis, sendo as áreas onde habitam pouco atrativas para a anexação a esse mundo novo. O selvagem John sonha em conhecer esse admirável mundo novo no qual só há espaço para a felicidade, tendo essa oportunidade após o contato com um membro dessa sociedade futurística. Apesar do deslumbre inicial com a alta tecnologia presente nesse mundo, logo o selvagem percebe o ônus de tal mundo feliz: a falta de liberdade, juntamente com a falta de sentimentos profundos que caracterizam a espécie humana.

"E esse — interveio sentenciosamente o Diretor — é o segredo da felicidade e da virtude: amarmos o que somos obrigados a fazer. Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar."

Os indivíduos que compõem essa sociedade são, desde o berço, inseridos em uma dada classe social através de sugestionamentos e da manipulação biológica, não havendo possibilidade de mudança posterior. Além disso, são incentivados desde cedo ao consumo de massa e à promiscuidade, não havendo incentivo para o desenvolvimento intelectual, salvo para fins de produção de bens de consumo; ou seja, as pessoas não são incentivadas a ler ou a aprofundarem seus conhecimentos referentes a questões relacionadas à vida, criando seres incapazes de possuir uma visão crítica da realidade.

"A volta à cultura. Isso mesmo, a cultura. Não se pode consumir muita coisa se se fica sentado lendo livros."

Com isso, cria-se um questionamento: a felicidade justifica a falta de liberdade? Ou seja, podemos abrir mão da liberdade em favor da felicidade coletiva? O administrador de uma das regiões que compõem esse admirável mundo novo acredita que sim. Para ele, é um preço que temos que pagar para sermos felizes, devido ao fato de a liberdade criar individualidades, enfraquecendo o coletivo, além do fato de muitas vezes podermos optar pelo sofrimento — como se vê no selvagem que, após se apaixonar, não abre mão de sofrer por esse amor ou pela perda de sua mãe.

"O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança: nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes, por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma."

Será que o sofrimento não faz parte do que é sermos humanos? Abrirmos mão dele seria abrirmos mão do que nos faz seres humanos? Segundo Huxley, o ser humano tem o livre-arbítrio de escolher entre a insanidade de um lado ou a demência do outro. O selvagem tem a opção de levar uma vida de prazeres através de drogas, orgias e entretenimentos de massa, ou levar uma vida de liberdade fora dos domínios desse mundo novo — vida essa composta, muitas vezes, por dor, sofrimento e sentimentos complexos. No fim, ele escolhe uma terceira opção.

"-- Preferimos fazer as coisas confortavelmente. --- Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero poesia, quero perigo autêntico, quero a liberdade, quero bondade. Quero pecado. --- Em suma — disse Mustafá Mond — o senhor reclama o direito de ser infeliz. --- Pois bem, seja — retrucou o selvagem em tom de desafio — Eu reclamo o direito de ser infeliz. --- Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer; no direito de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifoide; no direito de ser torturado por dores indizíveis de toda a espécie. Houve um longo silêncio. --- Eu reclamo todos — disse finalmente o Selvagem."

Leia outras resenhas de grandes obras da ficção científica.
O caçador de Androides, de Philip Dick;

segunda-feira, 23 de março de 2015

Pelos caminhos da vida , de AJ Cronin


Capa do livro Pelos caminhos da vida , de AJ Cronin. Cronin com os braços cruzados olahndo para o nada

A. J. Cronin, autor de livros de grande sucesso, tais como "O Castelo do Homem sem Alma", "A Cidadela" e "Sob a Luz das Estrelas', narra nesse livro autobiográfico momentos marcantes de sua trajetória de vida. 

Resenha de Pelos caminhos da vida 

Fotografia preto e branco de Cronin.

Deparamo-nos, nos capítulos iniciais, com um jovem Cronin lutando, apesar de todas as dificuldades, para se formar em medicina na Universidade de Glasgow. Natural de uma família de poucas posses e tendo perdido o pai na infância, Cronin viveu boa parte de sua fase de universitário alimentando-se precariamente e vestindo, segundo ele, o mesmo uniforme utilizado na Primeira Guerra Mundial.

"Vesti-me rapidamente, amaldiçoando a falta de recursos que me obrigava a usar o velho uniforme da marinha. Não era por gosto que assistia às aulas como um jovem almirante de esquadra — quando voltei da guerra, descobri que as traças haviam acabado com meu único terno civil."

Podemos resumir a vida de Cronin na palavra superação. Sempre alimentado por sonhos de grandes conquistas e riquezas, buscava a todo custo superar as limitações que a vida lhe impunha. Ao pretender uma vaga como assistente de um de seus professores na universidade, acreditando ser merecedor devido às suas excelentes notas, recebeu uma negativa do mestre, que sentenciou que Cronin nunca seria um bom cirurgião.

Tempos depois de formado, clinicando em uma pequena cidade da Escócia, ao receber no meio da madrugada um chamado, viu-se obrigado a abrir a traqueia de um menino em condições precárias. Ao operar o menino, Cronin se lembrou das palavras de seu mestre referentes à sua incapacidade de operar. Mas o desfecho foi excelente, tendo salvado a vida do garoto.

"A criança, desesperada pela dor, debatia-se como um peixe em uma rede. Céus! Onde está a maldita traqueia? Se não a encontrar logo, a criança vai morrer, vão dizer que eu a matei. Gotas de suor brotaram na minha testa quando me lembrei, de repente, das palavras fatais de MacEwen: 'você nunca será cirurgião'."

Acompanhamos no transcorrer da autobiografia diversas histórias emocionantes, sendo algumas tristes, como a história da garotinha de catorze anos que se sacrificava para criar os três irmãos após a morte de sua mãe; outras felizes, como a história de um pescador que vivia sozinho em um barco abandonado após ficar muito doente durante o inverno. Cronin, ao socorrê-lo, viu-se obrigado a transferi-lo para a mansão de uma jovem viúva localizada próxima ao local.
A viúva protestou veementemente ao fato de um homem praticamente mendigo ficar hospedado em sua casa. Após alguns dias, ela tentou retardar ao máximo a saída dele, afirmando que ele deveria ficar na casa até se recuperar completamente. A história termina com o casamento dos dois, sendo Cronin o padrinho.

Acompanhamos o casamento de Cronin com a sua namorada de faculdade. Logo após o casamento, ambos foram morar em uma cidade muito pobre da Escócia, que tinha por principal atividade econômica a mineração. Ali, talvez, Cronin tenha passado os momentos mais precários após sua formação. Os recém-casados moravam em uma casa de dois quartos, precariamente mobiliada. Foi ali, naquela cidadezinha, que Cronin decidiu continuar com seus estudos na tentativa de conquistar uma pós-graduação. Para alcançar esse feito, estudou durante meses nos poucos momentos de folga, tendo sido obrigado, para poder praticar para o exame, a frequentar um laboratório que ficava a uma hora e meia de distância da cidade onde morava — distância essa vencida utilizando uma velha motocicleta.

Quando foi prestar o temido exame oral, que consistia na parte final do exame, ele teve como primeira pergunta em qual das duas faculdades havia estudado: Oxford ou Cambridge. Cronin, sem jeito, afirmou ter estudado em Glasgow. O examinador não escondeu o seu desprezo.

"Um silêncio devastador. Gadsby não fez nenhum comentário, mas, levantando as sobrancelhas com ar desdenhoso, pôs diante de mim seis lâminas. [...] concentrou todo o desprezo de alguém para quem a simples menção de uma universidade escocesa era quase uma obscenidade."

Capa do livro Pelos caminhos da vida , de AJ Cronin

Mas, como quase tudo em sua vida, ele conseguiu os títulos, indo posteriormente clinicar em Londres. Já estabelecido em Londres, tendo conquistado uma boa condição financeira, Cronin passou por problemas de saúde que o levaram a buscar retiro no campo. Com bastante tempo livre, ele decidiu tentar realizar um de seus sonhos mais antigos: o de ser escritor.

Durante seis meses, Cronin passou boa parte dos seus dias sentado em frente às folhas que culminaram no seu primeiro romance, O Castelo do Homem sem Alma. O romance alcançou grande sucesso, sendo responsável por Cronin abandonar a carreira de médico e enveredar na de escritor. Nas páginas finais do livro, Cronin dedica-se à tarefa de expor suas ideias adquiridas ao longo da vida. Segundo ele, a tranquilidade conquistada após o sucesso como escritor proporcionou-lhe a oportunidade de ter tempo para meditar sobre a vida.

Nessa fase, Cronin se aproximou da religião, que, segundo ele, trouxe paz e harmonia. Passou a se preocupar com coisas que antes não considerava e a reavaliar o sentido de sua vida — uma vida pautada pela busca pelo sucesso e realização profissional, que acabou deixando de lado coisas tão importantes para a felicidade do ser humano.

"Aquele velho sonho de todos nós, a fraternidade universal, só poderá concretizar-se se a cooperação suplantar a competição entre os credos. Então, realmente, a humanidade será salva. Entretanto, tal mudança no coração do mundo tem de começar no coração de cada indivíduo; só pode ocorrer se todos que se dizem cristãos deixarem de servir a suas próprias seitas para se dedicarem ao bem da humanidade."

Nas últimas páginas, Cronin narra a sua visita às cidades europeias pós-Segunda Guerra Mundial, buscando demonstrar, através do relato do encontro em uma igreja com um senhor e sua filha paralítica, que mesmo após tantas adversidades, continuavam lutando pela felicidade. Mesmo após grandes tragédias, é possível buscar forças para continuar seguindo pelos caminhos da vida.

Gosta de Literatura Britânica ? Leia outras resenhas de mestres da Literatura britânica. 
Grandes Esperanças, de Charles Dickens;
As aventuras do Sr Pickwick, de Charles Dickens;


quarta-feira, 4 de março de 2015

A Riqueza do Homem, de Peter Jay

Capa do livro A Riqueza do Homem, de Peter Jay. Um cassino com fichas de aposta.

Jay aborda nesse livro todos os processos passados pelo homem, através dos tempos, na busca por uma melhor condição de vida, alcançada através do acúmulo de riquezas. Segundo ele, todos os indivíduos partilham da necessidade de obter bem-estar, buscando sempre melhorar sua condição de vida.

Resenha de A Riqueza do Homem


Os primeiros seres humanos viviam isolados uns dos outros, sobrevivendo através da atividade da caça. Com o passar do tempo, descobriu-se a agricultura como uma forma melhor e mais segura de suprir a fome; com isso, os seres humanos passaram a se juntar em grupos para trabalhar a terra, formando as primeiras sociedades do mundo, conhecidas como sociedades hidráulicas.

A sociedade utilizou-se da agricultura como fonte primordial de garantia de existência por aproximadamente 6 mil anos. Esse panorama foi mudado após o advento da Revolução Industrial. Jay, em conjunto com outros autores, afirma que, até o advento da Revolução Industrial, não houve substancial mudança na qualidade de vida dos seres humanos, sendo o avanço no bem-estar nos 300 anos após a revolução superior, aproximadamente, aos 6 milênios anteriores.

Após a Revolução Industrial, o homem pôde produzir excedentes, que possibilitaram um bem-estar e um acúmulo de capital. Este, através do seu investimento, proporcionou um maior desenvolvimento tecnológico, sendo o mesmo fundamental para o bem-estar do ser humano.

Após 300 anos de Revolução Industrial, vivemos em um mundo dominado pelos meios produtivos, que produzem os mais variados bens destinados ao consumo. Continuamos vendo pessoas vivendo na miséria sem acesso a esses produtos. Com isso, fica evidente que a sociedade igualitária, idealizada por muitos, não se concretizou, devido ao fato de que, apesar do aumento da capacidade do ser humano de produzir bens para o consumo, os seres humanos sempre buscam mais. Em uma tentativa frenética de sempre melhorar sua condição através do acúmulo de riqueza, poucos acabam ficando com muito e muitos acabam ficando com pouco.

Gosta de economia? Leia a resenha de Por uma outra Globalização, de Milton Santos. 

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Por uma outra globalização do pensamento único à consciência universal, de Milton Santos





Capa do livro de Por uma outra globalização de Milton Santos. Capa vermelha com letras em branco



Milton Santos, geógrafo marxista, expõe no livro Por uma Outra Globalização todas as contradições do atual processo de globalização, mostrando como a minoria que detém o poder faz com que creiamos, através de fábulas, que estamos vivendo um processo de bem-estar coletivo nunca antes visto.

Resenha de Por uma outra globalização


Santos enxerga a atual globalização como algo perverso, que cria e recria desigualdades, utilizando-se de instrumentos técnicos que poderiam proporcionar bem-estar para a sociedade para subjugar a humanidade a seus interesses perversos.

O autor mostra como a minoria que detém o poder no mundo utiliza-se das novas técnicas criadas pelo homem para manter o seu controle sobre a sociedade e aumentar seus lucros, criando situações de miséria ao redor do planeta e subjugando não só os habitantes das diversas nações como também seus governantes. Estes, através dos anos, foram perdendo o poder de criar mecanismos para proporcionar bem-estar para seus povos, deixando, com isso, de serem representantes dos interesses de suas nações para serem representantes dos interesses da minoria que detém o capital.

Milton Santos vislumbrava a possibilidade de uma nova globalização que possa, através das novas técnicas criadas pelos homens, proporcionar bem-estar e igualdade, viabilizando uma sociedade verdadeiramente igualitária. Segundo Santos, é preciso que o dinheiro deixe de ser o centro da existência humana, sendo substituído pelo bem-estar coletivo. Santos imagina esse processo partindo das camadas que não são favorecidas por essa globalização perversa, através da união dos menos favorecidos nos países prejudicados pelo sistema capitalista. Segundo Santos, os menos favorecidos são sábios porque conhecem a experiência da escassez; eles percebem a perversidade do sistema e, através de sua mobilização, poderão recriar os Estados, fortificando-os para que os mesmos possam lutar pelos interesses de seus povos.

Nunca antes o homem criou tantas técnicas capazes de proporcionar bem-estar para a humanidade, sendo imprescindível o uso delas em favor do bem-estar coletivo.

Gosta de economia? Leia a resenha de A Riqueza do Homem, de Peter Jay

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Crime e castigo, de Fiodor Dostoievski



Capa do livro Crime e castigo, de Fiodor Dostoievski. Fotografia do autor na capa.



Um dos maiores romances de Fiodor Dostoievski, autor de Crime e Castigo, Os demônios e Notas do subsolo.
O romance Crime e Castigo tem por personagem principal o russo Raskólnikov, que desenvolve uma teoria que exerce papel predominante nas suas ações, as quais culminam em um duplo homicídio.

Resenha de Crime e castigo, de Fiodor Dostoievski


Raskólnikov, filho de uma família de aristocratas empobrecidos, deixa a sua mãe e a sua irmã na província para ir estudar Direito em São Petersburgo, permanecendo três anos sem vê-las. Durante seus estudos, ele publica um artigo em um jornal da cidade no qual divide a raça humana em dois tipos de seres: os extraordinários e os vulgares.

Os extraordinários são homens que — levando-se em conta a premissa niilista de que Deus está morto — possuem capacidade intelectual elevada e se tornam legisladores da raça humana. Ou seja, são responsáveis pelo destino da humanidade, possuindo o poder de criar e de revogar leis. Para Raskólnikov, esses homens estão acima do certo e do errado, devido ao fato de terem o poder de decidir o que é correto e o que é incorreto. Os vulgares são homens que vivem segundo as leis criadas pelos legisladores.

Para Raskólnikov, um traço capital que distingue os extraordinários dos vulgares é a facilidade com que passam por cima de seus obstáculos, mesmo que seja preciso, para isso, burlar leis. Entre as leis que os extraordinários burlam está, talvez, a mais importante lei do cristianismo: não matarás. Os extraordinários são capazes de matar, se preciso, sem que haja um julgamento interno com respeito à legitimidade do ato. Ou seja, não sentem remorso por tirarem vidas na busca pelos seus objetivos. Para eles, se for necessário sacrificar algumas vidas para a humanidade alcançar determinado estágio, o mesmo será feito sem que haja algum tipo de remorso ou julgamento por parte da consciência.

Raskólnikov acreditava ser um desses homens extraordinários; mas, para conseguir alcançar seus objetivos, precisava de dinheiro. Com isso, surgia o seu primeiro obstáculo. Ao ser obrigado a penhorar alguns bens para se alimentar, ele conhece uma velha usurária. Raskólnikov via a senhora como um "piolho", pois a mesma não tinha nenhuma utilidade para a raça humana; com isso, ele decide matá-la para tomar para si o dinheiro.

Se a teoria de Raskólnikov estivesse correta, ele não sentiria remorso pelo homicídio, porquanto se considerava um extraordinário, ou seja, acima do certo e do errado. Com isso, Raskólnikov planeja e executa o homicídio, sendo que, logo após assassinar a usurária, acaba matando a irmã dela, que presenciou o ato. Após o duplo homicídio, Raskólnikov — devido às pressões psicológicas impostas pelo detetive Porfíri e pela sua própria consciência — vê-se dominado por uma grande angústia.
O romance Crime e Castigo tem por tema o embate entre a razão e a consciência, embate esse acentuado após o surgimento de diversas ideologias que vão contra os conceitos de certo e errado presentes na sociedade ocidental. 
O romance demonstra, em um mundo dominado pelo raciocínio, o poder da consciência no comportamento humano, estando as pessoas imersas em um conflito interno entre a razão e a consciência.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Um jogador, de Fiodor Dostoiévski



Capa do livro Um jogador, de Fiodor Dostoiévski


O romance Um Jogador tem por temática o vício adquirido no jogo de azar. A história se desenrola em uma cidade balneária da Prússia — antiga Alemanha antes da unificação — por volta do ano de 1866. Naquela época, o jogo de azar era proibido na maior parte do continente europeu, sendo permitido apenas em algumas cidades prussianas. Com isso, indivíduos de diversos lugares dirigiam-se aos cassinos dessas cidades para tentar a sorte na roleta.

Na trama, os personagens do romance encontram-se hospedados em um dos muitos hotéis da cidade, desfrutando de momentos de lazer nos pontos turísticos do balneário enquanto esperam um telegrama anunciando a morte de uma parente rica. A família — composta por um general, seu filho e sua enteada — passa por graves problemas financeiros, vislumbrando na morte da parenta rica a salvação de seus problemas financeiros.

O enredo do romance gira em torno da paixão avassaladora que o personagem Alexei, contratado como tutor do filho do general, nutre por Pauline, enteada do general. O personagem Alexei é retratado como um jovem de vinte e cinco anos que exerce a profissão de professor do filho do general. É importante salientar que, naquela época, um professor particular era visto como membro da criadagem, sem possuir privilégios especiais dentro das famílias; ou seja, um mero subalterno.

A tia rica do general é retratada como uma senhora de mais de setenta anos que, apesar de estar entravada em uma cadeira de rodas, mostra-se extremamente ativa e lúcida. Ela possui uma personalidade forte e autoritária, julgando-se conhecedora de todos os mistérios da vida. Ela não demonstra respeito pelo general, vendo-o como um parasita, indigno de respeito e consideração.

Para a surpresa geral, em vez de chegar um telegrama anunciando a sua morte, a mesma, em carne e osso, chega ao balneário, indo diretamente para as mesas de jogo perder a sua fortuna. É interessante notar o poder que o jogo tem sobre algumas pessoas, inclusive pessoas que aparentam estar imunes a seus artifícios, como a tia rica. Após ganhar nas primeiras rodadas, ela se acha dona da própria sorte, continuando confiante mesmo depois de seguidas derrotas. Talvez a possibilidade de vitória — ou de reverter uma derrota a apenas um passo — acorrente o indivíduo à mesa de jogo, sempre acreditando que sua sorte mudará.

No início do romance, apesar de estarem em um cassino, a possibilidade de mudança em suas vidas estava atrelada a um fator natural: a morte da tia rica. Todos apostaram nesse desfecho, como um jogador que aguarda a bolinha cair no número escolhido. Após a chegada da tia, o fator natural deixa de ser decisivo em detrimento do fator jogo de azar. Com isso, o jogo de azar passa a possuir papel decisivo para a sorte de todos, devido ao fato de que, se a tia perder tudo, todos perdem junto com ela.

Talvez um jogador não seja diferente de um cidadão que não jogue, pois ambos apostam o seu futuro em acontecimentos que estão longe do seu controle. Muitas vezes nos apegamos à possibilidade de possíveis acontecimentos de forma cega e viciante, como um jogador que se apega à mesa de jogo.
 
Gosta de Dostoiévski ? Leia outras resenhas de obras do autor.
Os demônios- Dostoiévski;
Crime e castigo - Dostoievski;
Notas do Subsolo, de Dostoievski;
O sonho de um Homem Ridículo, de Fiodor Dostoievski.




Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago


Capa do livro Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago. Fundo claro.

A história se desenrola quatro anos após os acontecimentos narrados no romance Ensaio sobre a Cegueira, no qual a cidade é tomada por um surto de cegueira coletiva. Dessa vez, ocorre na cidade outro tipo de cegueira. No surto ocorrido quatro anos antes, as pessoas foram privadas do sentido da visão; nos acontecimentos da atual narrativa, ocorre uma cegueira mental em parte dos habitantes da cidade.

Ensaio sobre a lucidez

Fotografia de José Saramago. Homem branco idoso

Quando pessoas acostumadas a utilizar o sentido da visão no seu dia a dia são privadas do mesmo, sentem-se completamente desnorteadas; cria-se uma situação de caos. Pessoas, após perderem sua lucidez, acabam imergindo em uma cegueira mental. Com isso, demonstram dificuldade para interpretar a realidade, imergindo também no caos.

Neste romance, a perda da lucidez não se dá a todos os habitantes da cidade, mas sim a alguns habitantes ligados a partidos políticos após as eleições municipais, devido ao medo de perderem o poder. Assim, após serem privados da lucidez, tomam atitudes embasadas em uma interpretação deturpada da realidade.

A perda da lucidez se dá após oitenta por cento dos habitantes da cidade votarem em branco nas eleições municipais. Fato que causa pânico entre os detentores do poder, que veem seu domínio ameaçado. Logo após o ocorrido, eles começam a imaginar diversas teorias conspiratórias que justificassem o ocorrido. Após diversas tentativas frustradas de descobrir quem estava por trás dos votos em branco, começa-se uma "caça às bruxas", culminando na saída da cidade dos órgãos governamentais, deixando os habitantes à sua própria sorte. Eles esperavam que a cidade entrasse em um estado de puro caos, mas o que se dá é justamente o contrário: após sua saída, a cidade continua a funcionar normalmente, fato que causa espanto nos líderes políticos.

É interessante analisar a forma com que Saramago narra a história, devido ao fato de o leitor ser levado a um estado de cegueira, no sentido de que é privado, pelo narrador do romance, de características fundamentais para a perfeita compreensão da trama. Dentre elas estão as características físicas do espaço e, principalmente, as características psicológicas dos personagens.

Em alguns momentos, o narrador introduz algumas dessas características, que lançam pequenos raios de luz diante dos olhos dos leitores cegados, contudo, sem serem suficientes para a perfeita interpretação da história. Com isso, os leitores experimentam, durante a leitura, o caos de se tentar interpretar algo sem possuir todos os sentidos.




domingo, 8 de fevereiro de 2015

Capitães da areia, de Jorge Amado




Capa do livro Capitães da areia, de Jorge Amado. Meninos lutando capoeira


O romance Capitães da Areia pode ser entendido como uma metáfora dos dilemas e controvérsias da sociedade brasileira do início do século XX, pois o livro traz à tona a problemática do abandono da maioria desfavorecida, simbolizada pela figura dos Capitães da Areia.

Resenha de Capitães da areia


Os Capitães da Areia, um grupo de meninos abandonados que vivem em um galpão, simbolizam a parcela do povo negligenciada pelo Estado e inconformada com sua situação. Eles unem-se, criando uma sociedade à margem e dona de suas próprias regras. Evidentemente, nenhum dos garotos do romance gostaria de estar nessa situação, mas a mesma lhes foi imposta.

"Desde aquela tarde em que seu pai, um carroceiro gigantesco, foi pegado por um caminhão quando tentava desviar o cavalo para um lado da rua, João Grande não voltou à pequena casa do morro. A cidade da Bahia, negra e religiosa, é quase tão misteriosa como o verde mar. Por isso, João Grande não voltou mais. Engajou com nove anos nos Capitães da Areia."

Estando eles abandonados, criam um movimento de união e organização pautado na tentativa de garantir a sobrevivência. É interessante notar que, através dessa organização, eles ganham confiança e coragem para não só sobreviverem, mas também para, através da força, se apropriarem do que consideram seus por direito, através de roubos e violência.

"No começo da noite caiu uma carga-d'água. Também as nuvens pretas logo depois desapareceram do céu e as estrelas brilharam; brilhou também a lua cheia. Pela madrugada os Capitães da Areia vieram. O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles esqueceram que não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham lar, nem pai, nem mãe, que viviam do furto como homens, que eram temidos na cidade como ladrões. [...] Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, gozando com as luzes."

Percebe-se que os jovens excluídos, após organizarem-se, julgam-se donos do território em que praticam seus roubos. Os personagens andam pelas ruas da cidade baiana sentindo-se reis caminhando em seu reino. É interessante notar a mudança na forma de pensar da personagem Dora, uma menina que, após a morte da mãe, vê-se, juntamente com o seu irmão, abandonada à sua própria sorte. Dora, quando sai com seu irmão pela cidade em busca de emprego, enxerga-a com um olhar totalmente oposto do olhar que apresenta após incorporar-se aos Capitães da Areia. Antes de incorporar-se aos capitães, Dora via a cidade como um lugar ruim, sentindo-se totalmente excluída dela.

"As luzes se acenderam e ela achou a princípio muito bonito. Mas logo depois sentiu que a cidade era sua inimiga, que apenas queimava os seus pés e a cansara."

Após incorporar-se aos capitães, ela passa a ver a cidade de outra forma, sentindo-se pertencente a ela. Os Capitães da Areia representam uma parcela da sociedade que, inconformada com sua exclusão, organiza-se formando uma sociedade utópica, no sentido de se acharem no direito de contrariar a ordem estabelecida, buscando, através da força, apropriar-se do que acreditam ser seus por direito.

Meninos brincando na areia

"Tinha vontade de se jogar no mar para se lavar de toda aquela inquietação, a vontade de se vingar dos homens que tinham matado seu pai, o ódio que sentia contra a cidade rica que estendia do outro lado do mar, na Barra, na Vitória, na Graça, o desespero da sua vida de criança abandonada e perseguida."

Temos, com isso, a metáfora da luta de classes do mundo contemporâneo. Temos a minoria que detém o poder, representada pelos burgueses assaltados pelos meninos; o aparelho de repressão do Estado, simbolizado pela polícia e pelo reformatório; e o povo, representado pelos meninos abandonados que buscam, através da união, formas de garantir a sua sobrevivência. 
O romance de Jorge Amado, que foi proibido e queimado em praça pública por ser considerado uma obra de cunho comunista, traz à tona os dilemas e contradições da sociedade capitalista contemporânea. Dilemas esses que permanecem presentes no cotidiano das cidades brasileiras.

"Companheiros, vamos pra luta..."