Ao ler Notas do Subsolo, romance publicado em 1864, adentramos de cabeça no labirinto escuro da mente humana. A inteligência e a cultura do autor das memórias não facilitam essa viagem, porquanto, ao racionalizar todos os fatos relacionados à existência humana, o autor traz mais questionamentos do que certezas sobre os mais variados temas.
Resenha de Notas do Subsolo
Todos os fatos relacionados à vida do autor das memórias são apresentados pelo próprio autor; com isso, não somos capazes de separar as verdades das mentiras. Enxergamos todos os eventos pelos olhos do narrador, que, em diversos momentos, nos alerta a não confiar no que ele diz.
No transcorrer da primeira parte do romance, o autor das memórias busca desmistificar, através do questionamento, fatos e certezas largamente propagados pelas ciências humanas no século XIX. O positivismo, bem como as ideias naturalistas, são amplamente atacados.
Os ideais capitalistas e socialistas também são alvos, porquanto, segundo ele, buscam revelar um mundo em que o ser humano segue um determinado padrão ou regra. Seja o capitalismo, onde se acredita que a busca pelo desenvolvimento pessoal e a livre concorrência contribuem para o desenvolvimento da sociedade, ou pelas ideias socialistas, onde o bem-estar social e a coletividade estariam no centro da preocupação humana, contribuindo para um mundo melhor.
"O homem, invariavelmente e em todo lugar, quem quer que ele seja, sempre gostou de fazer o que quis, e não como mandam a razão e o interesse próprio; ele, inclusive, pode querer algo contra seus próprios interesses, e às vezes até deve indubitavelmente querê-lo."
Para ele, o ser humano é guiado pelas suas vontades, sendo boa parte delas inexplicáveis e incompreensíveis; com isso, não há como, através da razão, racionalizá-las ou prevê-las.
"E por que os senhores estão assim tão firmes e solenemente convencidos de que apenas o que é normal e positivo, ou seja, o bem-estar, é vantajoso para o homem? A razão não estará cometendo um erro quanto às vantagens? Quem sabe o homem ame não apenas o bem-estar? Quem sabe ele ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o sofrimento é para ele tão vantajoso quanto o bem-estar? O homem, às vezes, ama o sofrimento de maneira terrível, apaixonada; isso é um fato."
O autor questiona os valores modernos embasados na racionalidade, mostrando quão perverso e inconstante o ser humano pode ser. Segundo ele, existem dois tipos de homens: os homens de ação e os homens de consciência amplificada.
Para ele, o homem de ação não está preocupado com as implicações filosóficas de seus atos; ele simplesmente encontra um objetivo e lança-se a ele sem pensar muito. Esse homem, diante de sua vontade, é capaz de se apegar a qualquer justificativa, por mais absurda que seja, para o seu ato. Ele é um imbecil, sendo o verdadeiro homem criado pela mãe natureza.
"Ele é um imbecil, indiscutivelmente, mas pode ser que o homem normal deva ser mesmo um imbecil, quem sabe? Pode ser que isso seja até muito bonito."
Já o homem de consciência amplificada é a antítese do homem normal, sendo que, ao contrário deste, ele não surgiu da natureza, mas sim de um tubo de ensaio. Ele é fruto de sua época, introjetando todo o discurso científico e lógico com o qual tem contato. Contudo, essa consciência faz com que o mesmo seja incapaz de agir, porquanto a consciência acaba sendo uma doença, por levar o homem a uma série de questionamentos, impedindo-o de agir e gerando um estado de inércia.
"O homem de proveta às vezes vai dobrar-se tanto diante de sua antítese que, com toda a sua consciência amplificada, honestamente vai se considerar um camundongo, e não um homem."
"Por acaso um homem com consciência pode ter amor-próprio?"
Segundo o autor das memórias, o homem de ação é ativo pois é limitado; ele é capaz de rapidamente se vestir de qualquer motivo para legitimar sua causa, sem questionar-se sobre esses motivos, ele simplesmente age. Já o homem de consciência amplificada possui muitas dúvidas e incertezas e está sempre pronto a rever seus motivos, inutilizando, com isso, a ação.
"Onde estão os fundamentos? De onde vou tirá-los? Faço uma ginástica mental e, em consequência, cada motivo original imediatamente arrasta atrás de si outro, ainda mais original, e vai por aí fora, até o infinito."
Esse homem questionador não irá encontrar o seu lugar no mundo, indo habitar no subsolo. Com isso, o mesmo não é arrastado para o subsolo, mas sim, de boa vontade, o habita. Não há outro lugar para ele; o mundo pertence ao homem de ação, sendo o subsolo o local destinado ao homem de consciência amplificada, por ser incapaz de se enganar.
Em uma Europa dominada pelo culto à razão, justamente a mesma acaba sendo responsável por impossibilitar o convívio em sociedade, sendo o ato de se iludir necessário para se viver em sociedade.
"Eu apenas levei às últimas consequências na minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom-senso, consolando-se e enganando a si próprios com isso."
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