quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

O processo, de F. Kafka


Capa de O processo, de F. Kafka

Nesse romance de Kafka, o leitor é carregado por caminhos tortuosos e desconhecidos. Durante esse trajeto, somos tragados junto ao personagem, sem a possibilidade de escapatória, pela engrenagem organizacional de um sistema público extremamente contraditório.

Resenha de O Processo


Nessa viagem, o leitor acompanha as desventuras de Josef K., que vivia uma vida tranquila, segura e livre de surpresas. Josef possuía um bom emprego em um banco, emprego que lhe possibilitava um local de trabalho organizado e seguro, compatível com a sua personalidade meticulosa. Essa vida confortável começa a mudar após, na manhã do seu aniversário de trinta anos, receber a comunicação de que estava sendo processado.

De início, Josef desacredita da existência desse processo, pensando estar sendo alvo de algum tipo de brincadeira. Essa atitude demonstra que ele não reconhece nenhum tipo de falta no seu comportamento que justifique um processo.

"É certo que, bem considerado, tudo isto não podia deixar de ser uma brincadeira pesada, a qual, por razões desconhecidas, talvez pelo fato de que hoje K. completava trinta anos, seus colegas de banco haviam organizado".

Contudo, não se tratava de brincadeira; Josef realmente está sendo processado por uma justiça que ele desconhece por completo. Ao ter o primeiro contato com essa justiça, Josef facilmente reconhece o caráter absurdo dela. Os responsáveis por intimá-lo em sua casa são tomados pelo mesmo como artistas de rua contratados para enganá-lo. Para ele, tudo não passa de uma farsa; com isso, não demonstra preocupação com o desenrolar do seu processo.

Tudo muda ao ser intimado a comparecer em seu primeiro interrogatório. Acreditando ter nesse interrogatório a oportunidade de esclarecer o motivo de seu processo, bem como encerrar o mesmo, Josef chega ao prédio de justiça confiante. Contudo, o interior do mesmo, bem como os funcionários públicos, fazem com que ele se sinta confuso, sendo que, para ele, essa justiça se mostra destituída de sentido e corrupta.

"Qual é a finalidade desta grande organização, meus senhores? Consiste em deter inocentes e em mover-lhes um processo insensato e, na maioria das vezes, como é o meu caso, carente completamente de resultados".

Essa justiça se apresenta para ele destituída de significado, porquanto torna a tarefa de defesa do acusado quase impossível, pois o mesmo desconhece o motivo de seu processo e os agentes dessa justiça tampouco buscam esclarecê-lo.

A repartição pública na qual desempenham suas funções é apresentada como um local de pesadelo. O ambiente é degradante, como se espelhasse a personalidade dos agentes públicos. Sua hierarquização em repartições é destituída de sentido e ordem, servindo apenas como forma de legitimar o poder de uns sobre os outros. Sua lei é baseada no poder, estando o acusado no último degrau dessa escada. Com isso, para fugir de uma possível condenação, ele não deve se amparar na lei, mas sim se utilizar de meios escusos para tanto.

Josef, ao ter contato com essa organização, decide se manter distante da mesma, buscando retornar para a sua vida normal. Contudo, sua vida começa a ser afetada pelo processo, pois este se configura como uma mancha na sua honra, necessitando ser solucionado. Devido à influência de seu tio, Josef procura um advogado. Esse advogado, um estudioso das leis e conhecedor da justiça, se mostra incapaz de traduzi-la para Josef de forma racional e ordenada.

Um pesadelo acordado


Josef vai aos poucos sendo sugado por esse novo mundo que surge diante de seus olhos; todo o seu conhecimento e racionalidade são inúteis diante de tal justiça, porquanto a mesma não tem sentido. Nessa justiça, o acusado não tem acesso ao seu processo, impossibilitando, com isso, uma defesa. A absolvição se mostra quase impossível, podendo o acusado apenas retardar ao máximo sua condenação.

"...no fundo a lei não admitia nenhuma defesa, mas tão somente a tolerava e até parecia perguntar-se se verdadeiramente não seria mister pôr em tela de juízo aqueles pontos dos códigos segundo os quais teria ao menos de admitir a defesa".

Desenho de um homem escrevendo com uma expressão de assustado

Com isso, a justiça não se mostra como uma possibilidade de resolução de conflitos advindos da vida em sociedade, mas sim como uma organização à parte da sociedade, com suas próprias regras, que busca apenas se autossustentar. Para tanto, é organizada de forma a sugar o acusado, devendo seus funcionários tirarem o máximo proveito das vantagens sobre o acusado. Nessa engrenagem corrupta e destituída de sentido, orbitam não somente funcionários públicos, mas também crápulas que se aproveitam de suas relações para tirar proveito.

Configura-se uma rede de relações entre os mais variados degraus dessa hierarquia, onde a verdade é apenas um detalhe, sendo esses homens — tidos como conhecedores da justiça — movidos pelas necessidades mais egocêntricas, tais como a necessidade de se autopromover e a necessidade de dominação sobre o próximo.

"...o cliente terminava por esquecer-se de todo o mundo e arrastar-se seguindo caminhos incertos, com a esperança de alcançar o término do processo. Então já não era um cliente, mas o cachorro do advogado. Se este lhe tivesse mandado que se metesse debaixo da cama, arrastando-se, como se se tratasse da casinha do cachorro, e que dali ladrasse, o cliente o teria feito com satisfação".

Apesar de Josef tentar não ser influenciado pelo processo, ele vai sendo gradativamente sugado pelo sentimento de opressão e desconhecimento do novo mundo no qual está inserido; com isso, sua vida vai saindo dos eixos, perdendo o mesmo toda a segurança e parte de sua sanidade. A engrenagem de uma organização pública, fundamental para a vida em sociedade, vai tragando aqueles desafortunados que, por motivos desconhecidos, caem em suas amarras, sendo lentamente sugados pelo absurdo.

"Onde estava o juiz que nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ante o qual nunca comparecera?"




















segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Notas do Subsolo, de Fiodor Dostoievski


Capa do livro Notas do Subsolo, de Dostoievski

Ao ler Notas do Subsolo, romance publicado em 1864, adentramos de cabeça no labirinto escuro da mente humana. A inteligência e a cultura do autor das memórias não facilitam essa viagem, porquanto, ao racionalizar todos os fatos relacionados à existência humana, o autor traz mais questionamentos do que certezas sobre os mais variados temas.

Resenha de Notas do Subsolo

Pintura de um jovem na natureza olhando para o nada

Todos os fatos relacionados à vida do autor das memórias são apresentados pelo próprio autor; com isso, não somos capazes de separar as verdades das mentiras. Enxergamos todos os eventos pelos olhos do narrador, que, em diversos momentos, nos alerta a não confiar no que ele diz.

No transcorrer da primeira parte do romance, o autor das memórias busca desmistificar, através do questionamento, fatos e certezas largamente propagados pelas ciências humanas no século XIX. O positivismo, bem como as ideias naturalistas, são amplamente atacados.

Os ideais capitalistas e socialistas também são alvos, porquanto, segundo ele, buscam revelar um mundo em que o ser humano segue um determinado padrão ou regra. Seja o capitalismo, onde se acredita que a busca pelo desenvolvimento pessoal e a livre concorrência contribuem para o desenvolvimento da sociedade, ou pelas ideias socialistas, onde o bem-estar social e a coletividade estariam no centro da preocupação humana, contribuindo para um mundo melhor.

"O homem, invariavelmente e em todo lugar, quem quer que ele seja, sempre gostou de fazer o que quis, e não como mandam a razão e o interesse próprio; ele, inclusive, pode querer algo contra seus próprios interesses, e às vezes até deve indubitavelmente querê-lo."

Para ele, o ser humano é guiado pelas suas vontades, sendo boa parte delas inexplicáveis e incompreensíveis; com isso, não há como, através da razão, racionalizá-las ou prevê-las.

"E por que os senhores estão assim tão firmes e solenemente convencidos de que apenas o que é normal e positivo, ou seja, o bem-estar, é vantajoso para o homem? A razão não estará cometendo um erro quanto às vantagens? Quem sabe o homem ame não apenas o bem-estar? Quem sabe ele ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o sofrimento é para ele tão vantajoso quanto o bem-estar? O homem, às vezes, ama o sofrimento de maneira terrível, apaixonada; isso é um fato."

O autor questiona os valores modernos embasados na racionalidade, mostrando quão perverso e inconstante o ser humano pode ser. Segundo ele, existem dois tipos de homens: os homens de ação e os homens de consciência amplificada.

Para ele, o homem de ação não está preocupado com as implicações filosóficas de seus atos; ele simplesmente encontra um objetivo e lança-se a ele sem pensar muito. Esse homem, diante de sua vontade, é capaz de se apegar a qualquer justificativa, por mais absurda que seja, para o seu ato. Ele é um imbecil, sendo o verdadeiro homem criado pela mãe natureza.

"Ele é um imbecil, indiscutivelmente, mas pode ser que o homem normal deva ser mesmo um imbecil, quem sabe? Pode ser que isso seja até muito bonito."

Já o homem de consciência amplificada é a antítese do homem normal, sendo que, ao contrário deste, ele não surgiu da natureza, mas sim de um tubo de ensaio. Ele é fruto de sua época, introjetando todo o discurso científico e lógico com o qual tem contato. Contudo, essa consciência faz com que o mesmo seja incapaz de agir, porquanto a consciência acaba sendo uma doença, por levar o homem a uma série de questionamentos, impedindo-o de agir e gerando um estado de inércia.

"O homem de proveta às vezes vai dobrar-se tanto diante de sua antítese que, com toda a sua consciência amplificada, honestamente vai se considerar um camundongo, e não um homem."

"Por acaso um homem com consciência pode ter amor-próprio?"

Segundo o autor das memórias, o homem de ação é ativo pois é limitado; ele é capaz de rapidamente se vestir de qualquer motivo para legitimar sua causa, sem questionar-se sobre esses motivos, ele simplesmente age. Já o homem de consciência amplificada possui muitas dúvidas e incertezas e está sempre pronto a rever seus motivos, inutilizando, com isso, a ação.

"Onde estão os fundamentos? De onde vou tirá-los? Faço uma ginástica mental e, em consequência, cada motivo original imediatamente arrasta atrás de si outro, ainda mais original, e vai por aí fora, até o infinito."

Esse homem questionador não irá encontrar o seu lugar no mundo, indo habitar no subsolo. Com isso, o mesmo não é arrastado para o subsolo, mas sim, de boa vontade, o habita. Não há outro lugar para ele; o mundo pertence ao homem de ação, sendo o subsolo o local destinado ao homem de consciência amplificada, por ser incapaz de se enganar.

Em uma Europa dominada pelo culto à razão, justamente a mesma acaba sendo responsável por impossibilitar o convívio em sociedade, sendo o ato de se iludir necessário para se viver em sociedade.

"Eu apenas levei às últimas consequências na minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom-senso, consolando-se e enganando a si próprios com isso."

Gostou da resenha ? Aproveite e leia outras resenhas de grandes obras da Literatura russa:















sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe



Capa do livro Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe

Goethe é considerado um dos maiores nomes da literatura universal. Seus livros, apesar de terem mais de duzentos anos, tratam de assuntos e impulsionam reflexões extremamente atuais.

Ainda em vida, Goethe pôde usufruir do reconhecimento e fama proporcionados pelos seus livros, em especial o livro "Os Sofrimentos do Jovem Werther", que chegou a ditar moda na Europa. Seu livro mais famoso, "Fausto", foi publicado após seus sessenta anos, mostrando que, muitas vezes, o melhor está guardado para a velhice e não o contrário.
Nascido em território prussiano, atual Alemanha, licenciou-se em Direito, mas nunca exerceu a profissão. O sucesso de seu romance de estreia, escrito aos 25 anos, proporcionou uma continuidade na carreira de escritor. Publicado pela primeira vez em 1774, o romance tem por tema a paixão avassaladora do jovem Werther por uma mulher comprometida.

Resenha de Os sofrimentos do jovem Werther de Goethe


Werther é um jovem de uma família com posses, que viaja pelo interior da Alemanha levando uma vida livre de compromissos. Na primeira parte do romance, temos contato com a história através das cartas de Werther endereçadas ao seu melhor amigo e confidente. Apesar de não termos acesso às respostas, fica evidente que o amigo, Guilherme, responde a elas aconselhando Werther; portanto, as cartas de Werther são, em parte, influenciadas pelas respostas do seu amigo.

Werther aparenta ser um sujeito culto e sensível, podendo sua sensibilidade ser verificada nas divagações com respeito à paisagem natural do local, sendo essas divagações repletas de sensibilidade:

"Não sei se algumas fadas ou gênios, espíritos de ilusão que vagueiam neste país, ou se é a imaginação celeste que, havendo se apoderado do meu coração, dá um aspecto de paraíso a tudo que me rodeia".

Além da paixão de Werther por Carlota, em suas cartas ele discute temas relacionados à existência humana:

"Quando eu considero os estreitos limites em que se acham encerradas as faculdades ativas e especulativas do homem (...) então Guilherme, emudeço. Entro em mim mesmo e aí encontro um mundo!".

Apesar de ser culto e sensível, a falta de propósito ou ocupação faz com que Werther leve uma vida de ociosidade:

"Eu trato o meu coração como uma criança doente; tudo o que deseja lhe concedo".

Werther, livre de preocupações mundanas tais como a necessidade de sustentar-se ou problemas de saúde, passa os seus dias contemplando a natureza e lendo Homero. Contudo, a harmonia de sua rotina é quebrada após conhecer Carlota.

"...desde aquele momento o sol, a lua, as estrelas, podem fazer tranquilamente as suas revoluções; eu não sei se é dia ou noite, todo o universo desaparece aos meus olhos".

A paixão devastadora que Werther desenvolve por Carlota faz com que ele perca seu rumo. Daquele momento em diante, nada mais faz sentido. Todo o prazer que antes Werther sentia na sua rotina deixa de fazer sentido, tornando-se Carlota a sua única razão de viver. Nas cartas direcionadas ao seu amigo, fica evidente essa transformação que se opera em Werther, porquanto todos os assuntos que antes Werther prazerosamente discutia com seu amigo vão sendo gradativamente substituídos pela necessidade do mesmo de louvar Carlota.

Esse amor se mostra impossível de ser concretizado, porquanto Carlota está comprometida com outro rapaz. Em nenhum momento da história surge uma brecha para que esse amor possa ser consumado; as convenções sociais da época impediam qualquer tipo de aproximação dos dois. Com isso, Werther vai definhando aos poucos, sucumbindo diante do vazio existencial que toma conta do seu ser. Sua vida deixa de ter sentido. Tudo o que antes o encantava perde gradativamente o seu encanto.

"Deus sabe quantas vezes eu me vou deitar com o desejo — que digo eu? — a esperança de não me levantar mais; e pela manhã eu abro os olhos, vejo o sol e me considero miserável".

A primeira parte da história nos é apresentada através das cartas de Werther; com isso, só temos acesso ao seu ponto de vista. Nos mantemos, durante a primeira parte, no escuro com respeito aos sentimentos de Carlota e dos demais personagens. Na segunda parte da história, surge um narrador em terceira pessoa que nos propicia, ora como espectador dos acontecimentos, ora como observador onipresente, uma visão mais abrangente da trama.

Nessa parte do livro, passamos a conhecer melhor Carlota, sem que a análise da personagem seja filtrada pela visão de Werther. Carlota demonstra possuir um caráter correto e nivelado com a ideia de decência da época; com isso, apesar de nutrir sentimentos por Werther, de forma alguma permite uma aproximação do mesmo.

Nessa segunda parte fica claro, apesar de não haver nenhum tipo de aproximação amorosa, que a situação está se tornando insustentável. O marido de Carlota, que na visão de Werther parecia não nutrir nenhum tipo de ciúmes, se mostra extremamente ciumento devido às frequentes visitas de Werther, tornando essas visitas indesejadas. A separação se torna iminente, partindo de Carlota o desejo de tornar o mais raras possíveis as visitas. Com isso, ao se separar de Carlota, Werther se separa do único fio que o mantém conectado a este mundo.

A leitura do romance transcorre de forma tranquila. A edição de bolso da editora L&PM combina extremamente com o conteúdo do livro. O fato de a maior parte da história ser contada através de cartas não a torna cansativa ou chata, porquanto nos sentimos íntimos do personagem, partilhando de seus sofrimentos como se as cartas tivessem sido endereçadas a nós.



Cena do filme Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. Um homem e uma mulher no campo canoversando usando trajes de época

Leia a resenha de outras grandes obras da Literatura européia: