Apesar de Dostoiévski ser reconhecidamente um dos maiores nomes da literatura mundial, ele não era bem visto na União Soviética. Seus livros causavam certo desconforto no regime, não servindo para a propagação dos ideais comunistas. Com isso, Dostoiévski foi tachado de reacionário, relegado a um segundo plano em detrimento de outros escritores contemporâneos a ele.
O desconforto criado pelos seus livros se deve ao fato de Dostoiévski procurar, em suas obras, compreender e discutir as influências das paixões e sensações na caracterização psicológica do indivíduo, podendo ser considerado um existencialista. Para ele, o ser humano é dividido em duas vertentes: uma racional e outra mística.
Vale lembrar que, no século XIX, predominavam na Europa os ideais positivistas. Ou seja, em oposição às ideias religiosas que predominavam na Idade Média — ideias essas embasadas no criacionismo —, buscava-se organizar a sociedade através do conhecimento racional e científico, tido como verdadeiro. Contudo, Dostoiévski ia na contramão desse movimento, porquanto acreditava que o ser humano não poderia apenas ser entendido através de suas ações racionais. Para ele, o ser humano possui uma vertente mística, no sentido de não ser possível compreender determinados comportamentos através da análise científica racional.
Para ele, o ser humano é dotado de subjetividade, sendo seu comportamento fruto da racionalidade juntamente com as paixões. Após ser preso por tramar contra a vida do czar russo, Dostoiévski passou alguns anos em uma prisão na Sibéria. Essa experiência resultou no livro "Recordações da Casa dos Mortos". Na prisão, Dostoiévski conviveu com perigosos detentos, muitos deles assassinos. Ao compartilhar do mesmo cotidiano com esses detentos, Dostoiévski verificou que eles não eram diferentes das pessoas tidas como normais. Muitos desses assassinos partilhavam das mesmas paixões e desejos encontrados em todas as pessoas, sendo capazes de ser sensíveis, simpáticos e de amarem.
Para Dostoiévski, o que os diferencia do resto da sociedade é o fato de terem cruzado a linha que determina o comportamento socialmente aceito. Com isso, Dostoiévski mostrará, através de seus livros, que as paixões humanas têm um papel importante na formação humana, sendo parte constituinte do ser humano, estando, com isso, o indivíduo em constante embate entre seu lado racional e emocional.
Resenha de Os Demônios
Em uma União Soviética que propagava ideais comunistas pautados na coletividade, essa subjetividade humana não teria espaço, porquanto haveria problemas para a efetivação desse pensamento coletivista em um mundo onde predominam as paixões individuais. O romance "Os Demônios" chegou a ser censurado na União Soviética, porquanto é tido como uma crítica aos ideais revolucionários de esquerda. Dostoiévski compara a história do romance à passagem bíblica em que Jesus encontra-se com um endemoniado. Segundo ele, os indivíduos influenciados por essa ideologia de esquerda assemelham-se ao endemoniado da passagem bíblica, devido ao fato de estarem possuídos por essa ideologia, sendo que acabam, através de coerções, transformando-se em marionetes.
Segundo o personagem Chatov, os movimentos socialistas do século XIX buscavam, através da ciência e da razão, compreender todos os aspectos da existência humana. Para ele, esses movimentos acabavam por excluir de suas análises esse lado místico do homem, criando, com isso, um modelo de sociedade que excluía os sentimentos humanos tão importantes para a compreensão do ser humano.
"Povo nenhum pôde jamais se organizar sobre a terra em bases científicas e racionais; povo nenhum o conseguiu, salvo talvez pela duração de um instante, e por estupidez pura. O socialismo na sua essência é ateu, porque proclamou desde o início que se propõe a edificar uma sociedade baseada unicamente na ciência e na razão. Por toda a parte e sempre, desde o começo dos tempos, a razão e a ciência só desempenharam na existência dos povos um papel subalterno, a serviço da vida; e assim será sempre, até o fim dos séculos."
Para Chatov, a ciência e a razão só desempenharam um papel subalterno na existência dos povos, sendo guiados, na maior parte do tempo, pelas paixões. Muitos modelos de sociedades socialistas, pautados no coletivismo, foram idealizados sem que se fosse pensado como se dariam as relações do cotidiano entre as pessoas — relações essas impregnadas de sentimentos relacionados às características individuais, características essas que, muitas vezes, não podem ser equacionadas pela razão.
"Os povos se constituem e se desenvolvem movidos por uma força diferente, uma força soberana, cuja origem se mantém desconhecida e inexplicável. Essa força é o desejo inextinguível de atingir um fim e ao mesmo tempo a negação desse fim."
As críticas ao socialismo presentes no livro, escrito décadas antes da Revolução de 1917, acabaram se concretizando no regime soviético, pautado pela violência devido à necessidade dos governantes de controlar as paixões humanas, buscando sempre suprimir o individualismo. Contudo, a crítica aos modelos de sociedades socialistas não faz com que Dostoiévski possa ser considerado um capitalista. Em diversos trechos de seus livros, ele critica o sistema capitalista, que em muitos casos busca se aproveitar das paixões humanas para lucrar mais; vide a indústria cultural e a alienação do consumo.
Dostoiévski, como um estudioso da mente humana, traz elementos indispensáveis para o debate dos rumos que a sociedade pode tomar, devendo o fato de sua visão tornar as relações sociais mais complexas ser visto como possibilidade de uma nova compreensão das relações sociais.



