segunda-feira, 23 de maio de 2016

Os demônios -Fiódor Dostoiévski



Capa do livro Os demônios -Fiódor Dostoiévski

Apesar de Dostoiévski ser reconhecidamente um dos maiores nomes da literatura mundial, ele não era bem visto na União Soviética. Seus livros causavam certo desconforto no regime, não servindo para a propagação dos ideais comunistas. Com isso, Dostoiévski foi tachado de reacionário, relegado a um segundo plano em detrimento de outros escritores contemporâneos a ele.

O desconforto criado pelos seus livros se deve ao fato de Dostoiévski procurar, em suas obras, compreender e discutir as influências das paixões e sensações na caracterização psicológica do indivíduo, podendo ser considerado um existencialista. Para ele, o ser humano é dividido em duas vertentes: uma racional e outra mística.

Vale lembrar que, no século XIX, predominavam na Europa os ideais positivistas. Ou seja, em oposição às ideias religiosas que predominavam na Idade Média — ideias essas embasadas no criacionismo —, buscava-se organizar a sociedade através do conhecimento racional e científico, tido como verdadeiro. Contudo, Dostoiévski ia na contramão desse movimento, porquanto acreditava que o ser humano não poderia apenas ser entendido através de suas ações racionais. Para ele, o ser humano possui uma vertente mística, no sentido de não ser possível compreender determinados comportamentos através da análise científica racional.

Para ele, o ser humano é dotado de subjetividade, sendo seu comportamento fruto da racionalidade juntamente com as paixões. Após ser preso por tramar contra a vida do czar russo, Dostoiévski passou alguns anos em uma prisão na Sibéria. Essa experiência resultou no livro "Recordações da Casa dos Mortos". Na prisão, Dostoiévski conviveu com perigosos detentos, muitos deles assassinos. Ao compartilhar do mesmo cotidiano com esses detentos, Dostoiévski verificou que eles não eram  diferentes das pessoas tidas como normais. Muitos desses assassinos partilhavam das mesmas paixões e desejos encontrados em todas as pessoas, sendo capazes de ser sensíveis, simpáticos e de amarem.

Para Dostoiévski, o que os diferencia do resto da sociedade é o fato de terem cruzado a linha que determina o comportamento socialmente aceito. Com isso, Dostoiévski mostrará, através de seus livros, que as paixões humanas têm um papel importante na formação humana, sendo parte constituinte do ser humano, estando, com isso, o indivíduo em constante embate entre seu lado racional e emocional.

Resenha de Os Demônios


Em uma União Soviética que propagava ideais comunistas pautados na coletividade, essa subjetividade humana não teria espaço, porquanto haveria problemas para a efetivação desse pensamento coletivista em um mundo onde predominam as paixões individuais. O romance "Os Demônios" chegou a ser censurado na União Soviética, porquanto é tido como uma crítica aos ideais revolucionários de esquerda. Dostoiévski compara a história do romance à passagem bíblica em que Jesus encontra-se com um endemoniado. Segundo ele, os indivíduos influenciados por essa ideologia de esquerda assemelham-se ao endemoniado da passagem bíblica, devido ao fato de estarem possuídos por essa ideologia, sendo que acabam, através de coerções, transformando-se em marionetes.

Segundo o personagem Chatov, os movimentos socialistas do século XIX buscavam, através da ciência e da razão, compreender todos os aspectos da existência humana. Para ele, esses movimentos acabavam por excluir de suas análises esse lado místico do homem, criando, com isso, um modelo de sociedade que excluía os sentimentos humanos tão importantes para a compreensão do ser humano.

"Povo nenhum pôde jamais se organizar sobre a terra em bases científicas e racionais; povo nenhum o conseguiu, salvo talvez pela duração de um instante, e por estupidez pura. O socialismo na sua essência é ateu, porque proclamou desde o início que se propõe a edificar uma sociedade baseada unicamente na ciência e na razão. Por toda a parte e sempre, desde o começo dos tempos, a razão e a ciência só desempenharam na existência dos povos um papel subalterno, a serviço da vida; e assim será sempre, até o fim dos séculos."

Pintura de Dostoiévski

Para Chatov, a ciência e a razão só desempenharam um papel subalterno na existência dos povos, sendo guiados, na maior parte do tempo, pelas paixões. Muitos modelos de sociedades socialistas, pautados no coletivismo, foram idealizados sem que se fosse pensado como se dariam as relações do cotidiano entre as pessoas — relações essas impregnadas de sentimentos relacionados às características individuais, características essas que, muitas vezes, não podem ser equacionadas pela razão.

"Os povos se constituem e se desenvolvem movidos por uma força diferente, uma força soberana, cuja origem se mantém desconhecida e inexplicável. Essa força é o desejo inextinguível de atingir um fim e ao mesmo tempo a negação desse fim."

As críticas ao socialismo presentes no livro, escrito décadas antes da Revolução de 1917, acabaram se concretizando no regime soviético, pautado pela violência devido à necessidade dos governantes de controlar as paixões humanas, buscando sempre suprimir o individualismo. Contudo, a crítica aos modelos de sociedades socialistas não faz com que Dostoiévski possa ser considerado um capitalista. Em diversos trechos de seus livros, ele critica o sistema capitalista, que em muitos casos busca se aproveitar das paixões humanas para lucrar mais; vide a indústria cultural e a alienação do consumo.

Dostoiévski, como um estudioso da mente humana, traz elementos indispensáveis para o debate dos rumos que a sociedade pode tomar, devendo o fato de sua visão tornar as relações sociais mais complexas ser visto como possibilidade de uma nova compreensão das relações sociais.

Leia a resenha de outros livros de Dostoiévski:



 

terça-feira, 10 de maio de 2016

O retrato de Dorian Gray- Oscar Wilde



Capa do livro O retrato de Dorian Gray- Oscar Wilde

Em uma época em que prevalecia uma literatura realista permeada de valores vitorianos, onde se buscava retratar a dinâmica social e, em muitos casos, contestá-la, surge um movimento artístico cunhado de esteticismo, pautado pela apreciação da arte por ela mesma. Ou seja: enquanto os realistas buscavam uma utilidade social para a arte, os esteticistas buscavam apreciá-la como sendo o seu único fim. Com isso, surge o termo "arte pela arte".

"Toda arte é completamente inútil."

A vida tumultuada de Oscar Wilde — ele chegou a ser preso por atos indecorosos — demonstra bem sua concepção de vida. Wilde perseguia o belo, livre de quaisquer preconceitos ou convenções sociais. Em um mundo perverso e cheio de contradições, Wilde via a arte como subterfúgio da tristeza da existência humana.

"Posso simpatizar com tudo, menos com o sofrimento [...] Com isso não posso simpatizar. É demasiado feio, demasiado horrível, demasiado aflitivo. Há algo de terrivelmente mórbido na simpatia moderna pela dor. Devemos simpatizar com a cor, com a beleza, com a alegria da vida. Quanto menos se fale das chagas da vida, tanto melhor."

Resenha de O retrato de Dorian Gray


Em determinado trecho do romance, verifica-se toda a entrega do artista na produção artística. O artista transforma-se em escravo da arte, perseguindo um ideal que transcende o nível do real. No trecho a seguir, o artista, tendo a oportunidade única proporcionada pela história, tem a oportunidade de dialogar com sua criação:

"Para mim, você se converteu na encarnação visível desse ideal invisível que nos persegue a nós, artistas, como um sonho estranho. Foi devoção o que senti por você [...]. Queria você só para mim. Só era feliz quando estava com você. [...] Havia visto a perfeição face a face e o mundo se tornou maravilhoso demais."

Muitos utopistas buscaram transformar o social no intuito de se alcançar um mundo melhor; contudo, essa busca não gerou muitos frutos. Os esteticistas, ao deixarem de lado essa busca, concentraram-se na realização humana através da arte. No romance de Wilde, o artista, Basil Hallward, encontra no jovem Dorian Gray a perfeição física e a pureza mental muitas vezes somente encontradas na juventude — época em que os vícios ainda não corromperam a beleza humana. Com isso, decide imortalizá-lo em um retrato.

Ao término da confecção do retrato, surge o amigo de Basil, Sr. Henry Wotton. Ao contrário de Basil, que vive para a arte, o Sr. Wotton vive para seu prazer, manipulando e destruindo tudo que estiver no seu caminho. Ao se deparar com o jovem Gray, o Sr. Wotton vislumbra a possibilidade de, através de jogos psicológicos, moldá-lo e corrompê-lo.

"Estava de fato convencido de que o método experimental era o único pelo qual se podia chegar a uma análise científica das paixões, e Dorian Gray era, certamente, um indivíduo feito para as suas mãos e que parecia prometer ricos e frutuosos resultados."

"Influenciar uma pessoa é transmitir-lhe a nossa própria alma. Ela já não pensa com seus pensamentos naturais, nem arde com suas paixões naturais. As suas virtudes não são reais para ela. Os seus pecados, se é que existem pecados, são emprestados. Ela se converte em eco de uma música alheia, em ator de um papel que não foi escrito para ela."

O Sr. Wotton vai aos poucos corrompendo o jovem Dorian. Através de jogos psicológicos, destrói a pureza do jovem, lançando-o nos maiores vícios e quebrando todos os tabus sociais. Dorian passa a viver para o prazer, seja ele qual for, sem preocupar-se com os efeitos dessa busca sobre si mesmo e sobre os outros.

"Nunca procurei a felicidade. Quem no mundo deseja a felicidade? Procurei o prazer."

Retrato de Oscar Wilde

Sua jovem noiva, uma atriz pobre que o encantou pelo seu talento e beleza, comete suicídio após ser abandonada por Dorian. Ele demonstra não sentir remorsos pelo ocorrido, como se tivesse perdido a capacidade de medir as consequências de seus atos.

Todas essas experiências vivenciadas de forma inconsequente por Dorian não degradaram sua beleza física e mental. Ao passar dos anos, Dorian continuava jovem e sadio. Isso se deu graças a um pacto que o mesmo fez, ainda jovem, ao vislumbrar seu retrato finalizado por Basil. Ao contemplar o quadro, percebe que sua beleza transportada para a tela permanecerá intacta apenas ali, enquanto ele envelhecerá e perderá sua juventude.

"Como é triste! Tornar-me-ei velho, horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre jovem."

Diante disso, Dorian faz um pacto, ofertando sua alma em troca de que, em vez dele, seu retrato suporte o peso do tempo e dos vícios adquiridos. Com isso, o retrato passa a envelhecer e guardar as marcas dos vícios de Dorian, enquanto ele permanece jovem e sadio. Ao fazer esse pacto, Dorian não simplesmente se livrou da degradação física, mas também de sua alma, porquanto nossa degradação serve de alerta para que possamos repensar nossa existência.

Com o tempo, a existência do retrato atormenta Dorian, porquanto contemplá-lo é como se estivesse contemplando sua própria alma. Dorian decide destruir o retrato para recuperar seu sossego.

"Mataria o passado e tornar-se-ia livre. Mataria aquela monstruosa alma visível e, sem suas hediondas advertências, recuperaria o sossego."

Contudo, Dorian não havia compreendido que, na verdade, seu retrato continha sua humanidade e, sem ele, Dorian não existiria.